quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Alice e Ulisses, Ana Maria Machado

Título: Alice e Ulisses
Autor: Ana Maria Machado
Editora: Objetiva (Alfaguara)
Edição: 1ª edição, Rio de Janeiro, 2012.

            Alice e Ulisses é o primeiro romance adulto de Ana Maria Machado, reconhecida internacionalmente e ganhadora do Prêmio Hans Christian Andersen por sua extensa obra voltada para o público infantil. É notório também seu envolvimento com a Academia Brasileira de Letras, a qual presidiu durante o biênio 2012/2013.
            A autora demonstra em seu romance de estreia invejável desenvoltura com a linguagem que aparece simples, mas jamais superficial. Os papéis dos personagens principais remetem o leitor aos grandes personagens da literatura: Alice é uma mulher curiosa, com uma tendência a não pensar demais nas consequências de suas explorações, mas uma inteligência aguçada. É interessante também seu envolvimento com o universo infantil por meio da profissão de professora e seu gosto pelos contos de fada, que surgem pontuando os acontecimentos da narrativa. Ulisses, por sua vez, gosta da aventura e a vive com sinceridade fervorosa, mas é incapaz de abandonar a ideia do lar como lugar para o qual deve retornar. Cineasta famoso e respeitado, Ulisses encontra Alice – cujo ex-marido era crítico de cinema – em um coquetel e desde então não conseguem se desligar totalmente um do outro.
            O relacionamento é intenso e há um conflito entre as personagens que muitas vezes reflete o conflito entre o masculino e o feminino. A própria Alice, em certo momento, define o problema do relacionamento entre os dois como “político”, resultado de sua condição de mulher. Ela questiona e tenta entender o motivo dessa paixão, reclama sentir-se colonizada e esses questionamentos encaminham o livro para seu ponto alto – curiosamente, um momento que exclui Ulisses – em que Alice encontra-se frente a frente com a esposa de seu amante. Esse é um momento de ruptura para Alice, que se percebe personagem em uma encenação e não aceita se manter nessa condição. Essa ruptura se dá também na narrativa que é predominantemente em terceira pessoa, mas se encerra com um parágrafo na primeira.
            O emprego deste recurso é particularmente interessante em face da revelação que Alice faz a Ulisses de que está trabalhando em escrever sobre os dois, motivada por uma necessidade de racionalizar o relacionamento e também por sentir-se vista como personagem, como objeto de estudo de seu amante em seus filmes e ter vontade de inverter a câmera. Uma possibilidade de leitura seria, então, a de que o narrador em terceira pessoa onisciente que predomina o livro é uma face da própria Alice, analisando e editando os fatos – sua libertação enquanto narradora acontece ao mesmo tempo em que sua libertação enquanto ser humano, sua negação de manter-se fiel à tradição esperada dos relacionamentos entre homens e mulheres.
            Se a tradição é recusada no que diz respeito aos relacionamentos, é aceita no plano literário. Alice e Ulisses lança mão, sabiamente, de diversos textos clássicos e autores importantes para ancorar sua narrativa. A escolha da linguagem marcada pelo coloquial é interessante recurso, uma vez que evita dar ao texto um ar de pretensão, mas sim dando vida aos diálogos e, consequentemente, aos seus enunciadores – e aí está o maior trunfo do romance. 

Nota: ♥♥♥♥

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Clarice, Benjamin Moser

Título: Clarice,
Autor: Benjamin Moser
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: Cosac Naify
Edição: 2ª edição, São Paulo, 2013.

            Clarice Lispector sempre foi uma figura intrigante em nossa Literatura e coube a Benjamin Moser, crítico e tradutor norte-americano interessado na língua portuguesa e, em especial, em nossa Literatura, tentar traçar o mais completo perfil de uma de nossas maiores escritoras.
            A linguagem clara e a boa organização são os principais auxiliares de Moser para contar a vida de Clarice. O livro inicia-se com uma tentativa de esclarecer as circunstâncias do nascimento da autora - propositalmente obscuras graças aos esforços de Clarice, que odiava ser vista como uma escritora “estrangeira”. De origem ucraniana, a família Lispector fugiu da perseguição dos judeus e conseguiu deixar o continente europeu, porém não incólume. Clarice, que nasceu quando boa parte da rota de fuga de seus pais já estava para trás, não tinha recordações desses acontecimentos que deixaram memórias marcantes em seus pais e suas irmãs, mas ficou com muitas recordações das consequências. A pesquisa intensa de Moser prova-se frutífera para o entendimento da obra da autora ao relacionar, sabiamente, as cicatrizes que esse período deixou nos Lispector e alguns motivos recorrentes na obra de Clarice. Também relaciona à infância o gosto pela narrativa, artifício escolhido pela então menina para distrair sua mãe da dolorosa doença que culminou em sua morte, deixando as três meninas Lispector órfãs.
            Acompanhamos então o desenvolvimento de Clarice de uma criança inteligentíssima a uma jovem promissora, interessada tanto em Literatura quanto em Cálculo. Os Lispector estabelecem-se em Recife durante a infância e adolescência de Clarice, mudando para o Rio de Janeiro quando suas irmãs estão mais velhas e já trabalhando e Clarice prestes a entrar na Universidade. Gradua-se em Direito, mas dedica-se à profissão jornalística e ingressa no mundo da Literatura com a publicação de seu primeiro romance, Perto do coração Selvagem. É na Universidade que conhece o homem que viria a ser seu marido, Maury Gurgel Valente, diplomata com quem Clarice parte do Brasil para morar por alguns anos na Itália, Suíça e, por fim, nos Estados Unidos. Com ele tem dois filhos, Pedro e Paulo e durante esse período trabalha intensamente, porém encontra dificuldades para publicar seus livros. A saudade do Brasil e de suas irmãs e a frustração com a vida essencialmente doméstica levam a uma separação e o retorno ao Rio de Janeiro. É notável o respeito com que o autor aborda as relações marcantes da vida de Clarice, sejam amizades ou romances.
            Moser segue sua obra organizando-a em torno dos livros escritos e publicados por Clarice, dando ao seu leitor insight enriquecedor sobre algumas questões que interessavam a autora. É bem observada a relação do pensamento da autora com o do filósofo Spinoza, de quem foi leitora. Apesar disso, pouco é dito das leituras realizadas por Clarice – ela mesma raramente citava outros autores e essa curiosidade não é satisfeita aqui também.
 São abordados alguns de seus textos jornalísticos com a sensatez apropriada, uma vez que Clarice recusava-se a assiná-los com seu nome verdadeiro em vida apesar de agora serem publicados em coletâneas com seu nome postumamente.
A obsessão com o nome é, afinal, um dos grandes temas da autora. Resulta, principalmente, da influência que o pensamento religioso judaico, em especial seus estudos de Cabala, que se desdobra em diversos questionamentos presentes em seus escritos. A questão religiosa é apresentada com particular maestria por Moser, que resiste bravamente à tentação de simplificar o complexo pensamento presente na obra de Clarice.
O retrato pintado por Moser é fascinante e dá ao leitor uma visão rica de Clarice Lispector – jovem judia de sotaque diferente, a impecável mulher de diplomata, a mãe e escritora e, finalmente, uma autora reconhecida pelo seu país. Apesar disso, ainda fica a sensação de que algo escapa... e nenhuma sensação poderia ser tão apropriada quando o assunto é Clarice. 

Nota: ♥♥♥

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Estorvo, Chico Buarque de Hollanda

Título: Estorvo
Autor: Chico Buarque de Hollanda
Editora: Record/Altaya
Edição: Coleção Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa, 1998.

          Estorvo é o romance de estreia do compositor Chico Buarque, publicado pela primeira vez em 1991 e recebido positivamente pela crítica que premiou-o com um prêmio Jabuti de melhor romance.
       Narrado em primeira pessoa, Estorvo, acompanha seu personagem anônimo em suas ações durante uma fuga causada por um rosto misterioso que ele vê em seu olho mágico e que o perturba a ponto de decidir fugir e evitar sua própria casa. A partir desse momento o leitor percebe que terá que decifrar as informações fragmentadas que o fluxo de pensamento do personagem nos oferece sem quase nenhuma linearidade temporal. O autor tira proveito máximo desse recurso para cercar sua narrativa de uma atmosfera onírica, fazendo com que a dúvida paire no ar.
            A busca por um lugar seguro acaba como uma busca por lugares femininos – as duas principais relações mantidas pelo personagem são com sua irmã e sua ex-mulher e o apartamento de sua mãe é retomado constantemente, apesar de se apresentar sempre indisponível. Ambas as mulheres que são de fato presentes em sua vida o aceitam como se aceita alguém incapaz de cuidar de si mesmo e é essa a principal impressão que o personagem deixa em seu leitor.
            Suas ações são gratuitas, movidas pela inspiração do acaso. Suas consequências, no entanto, são reais – existe uma oscilação entre o que diz respeito ao narrador e aos personagens secundários que insinua essa distinção. Talvez essa seja a maior falha do livro: falta algo que ancore a narrativa ou pelo menos seu personagem principal que é mais do que mero estorvo para os que estão ao redor: fica difícil acreditar que suas ações não tenham nunca peso quando elas acarretam consequências tão graves para aqueles ao seu redor. Ou será que suas ações não tem peso e ele só deseja que assim seja, perdido em seus pensamentos?
            Apesar da narrativa insatisfatória em si mesma, o uso de recursos linguísticos faz com que a leitura seja agradável. A prosa marcada pela individualidade não-individual de seu narrador que é ninguém e qualquer um é  bem construída e mantida durante o livro todo por meio de uma prosa simples. Essa construção condiz harmonicamente com seu narrador que em diversos momentos devaneia hipóteses, constrói cenário e os abandona bruscamente – assim como parece abandonar tudo mais que o rodeia, porém sem que isso deixe de acrescentar ao todo uma nova informação. É nessa realização que está o alicerce do incerto romance de Chico Buarque que cumpre o que propõe desde o começo: não dar respostas ao seu leitor, perdido na perturbação de seu estorvo.

Nota: ♥♥♥