quarta-feira, 15 de março de 2017

O verão sem homens, Siri Hustvedt

Autor: Siri Hustvedt
Tradução: Alexandre Barbosa de Souza
Edição: São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

A norte-americana Siri Hustvedt é ficcionista e ensaísta contemporânea e tem encontrado público cativo para seus romances, que são focados na questão da experiência feminina na sociedade como brecha para a reflexão acerca dos relacionamentos humanos e sua complexidade. 
A narradora de O verão sem homens, Mia,  tem plena consciência da banalidade de seu drama. Doutora em filosofia e poeta publicada com modesta, mas respeitável recepção, ela enfrenta o possível fim de seu casamento de trinta anos com Bóris, neurocientista. Após descobrir ter sido traída, Mia surta e é hospitalizada – para sua própria vergonha, uma vez que a marca definidora desta personagem é sua lucidez – e precisa reconstruir a si mesma. 
Para isso, busca o refúgio mais óbvio possível: a proximidade com sua mãe, agora uma viúva que mora sozinha. Abandona Nova Iorque por uma cidadezinha qualquer em Minessota pelo verão, toma para si a missão de ministrar uma oficina de poesia para jovens adolescentes e arranja uma casa próxima da residência em que cresceu.
Siri Hustvedt cria um universo bastante interessante, embora o excesso de novos personagens em tão poucas páginas confunda um pouco o leitor no começo. Mia toma parte do clube de leitoras de sua mãe, onde conhece talvez a personagem mais interessante do livro, a alta e imponente Abigail, que por trás da faixada de professora aposentada de artes revela suas obras secretas: com o uso de vários materias, fazia bordados que escondiam bordados. Se a primeira camada era feita de cenas pacatas, a segunda continha cenas entre o nonsense e o erótico. Essas obras, seus “alumbramentos”, mantiveram-se segredo assim como os pormenores de sua vida sentimental. Sua ligação imediata com Mia, alguém sem tantos preconceitos e também uma apreciadora ávida de arte, é escrita de forma bastante sentimental e deixa clara a mensagem de que há um mundo particular por trás de cada mulher banal vivendo um drama banal. 
Outras relações significativas travadas são com o grupo de jovens estudantes, que logo fazem com que Mia reflita sobre sua própria adolescência, marcada por uma sensação de inadequação. Ao invés de simplesmente empatizar com Alice, a menina ostracizada, Mia reflete de verdade sobre a experiência daquelas meninas sem cair nos clichês. Há também Lola, a vizinha que casou-se cedo e enfrenta a batalha de criar seus dois filhos com um marido irritadiço e logo torna-se sua amiga.
Muita coisa acontece em O verão sem homens e, apesar do enredo principal – o drama entre Mia e Bóris – permancer em sua posição central, mantendo o resto em ordem, há a sensação de que o romance não dá conta de tudo que propõem, explorando mal o universo colorido que apresenta. Incomoda, principalmente, quando questões que são apresentadas como centrais no começo são abandonadas ao longo da narrativa para que o desfecho aconteça.
O romance conta também com alguns poemas e ilustrações de Mia. Os primeiros dialogam diretamente com as situações abordadas enquanto os segundos relacionam-se mais frouxamente com os acontecimentos. O objetivo de fazer deste um caderno de anotações de Mia em seu período de recuperação não é alcançado plenamente, no entanto, e em alguns momentos o leitor esquece-se mesmo deste recurso formal que acaba sendo um detalhe.
A tradução encontra obstáculos em certas expressões idiomáticas rapidamente reconhecidas por quem conhece o idioma original, em parte devido à dicção bastante atual do romance. Apesar disso, a leitura de O verão sem homens é fluída e bem-humorada, com sensibilidade acertada que compensa suas falhas e torna-o um chick lit com mais substância que a média. 

Nota: ♥♥♥

terça-feira, 7 de março de 2017

A montanha mágica, Thomas Mann

Autor: Thomas Mann
Tradutor: Herbet Caro
Revisão da Tradução e Posfácio: Paulo Astor Soethe
Edição: São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

Clássico fundamental tanto da literatura alemã como da literatura ocidental como um todo e exemplo perfeito de bildungsroman (romance de formação), A montanha mágica foi publicado em aguardada nova edição pela Companhia das Letras em 2016. O livro recebeu os cuidados merecidos, optando por manter a elogiada tradução do falecido tradutor Herbert Caro, mas recebeu uma revisão para atualizá-la e posfácio novo além, é claro, de novo projeto gráfico. Publicada pela primeira vez em 1924, a obra lança interessante luz sobre a sociedade europeia e seus conflitos ideológicos que culminaram na Primeira Guerra Mundial, ao mesmo tempo que oferece enriquecedor panorama para quem quer entender melhor o que constitui a identidade do continente até hoje. Sua fortuna crítica é extensa e de alta qualidade, inclusive entre teóricos brasileiros, uma vez que há uma curiosa ligação biográfica do autor com nosso país – sua mãe nasceu e viveu seus primeiros anos entre Angra dos Reis e Paraty, antes de ser enviada para Alemanha – a acrescentar ao caráter monumental da obra que extende-se, nesta edição, por 827 páginas e rendem infinitas análises. 
Uma questão, no entanto, parece ser consenso: A montanha mágica lida com a questão do tempo como fonte de desconcertante ambivalência à qual estamos sujeitos pela condição humana. 
Hans Castorp, nosso protagonista, é jovem engenheiro de origem nobre e modos burgueses. Orfão de pais, conhece a morte desde muito cedo e é criado pela família estendida, cuja figura do tio-avô desperta o tipo de respeito que somos incentivados a sentir pelas figuras patriarcais austéras. Castorp, como a própria narrativa coloca, é um sujeito comum, talvez até medíocre. Resolve visitar seu primo, Joachim, no sanatório para tuberculosos e aproveitar pare revigorar-se de uma persistente anemia. Seu plano inicial é passar apenas três semanas e partir para sua primeira experiência de campo como engenheiro naval, mas eles caem por terra quando a pequena anemia que pretendia tratar concomitantemente à visita ao primo evolui para um quadro pior – embora nunca diagnosticado efetivamente. 
O tempo no sanatório de Berghorf corre de forma diferente. Uma rotina rígida é respeitada pelos pacientes, que são alimentados com fartas refeições, fazem caminhadas diárias, registram a própria temperatura periodicamente e repousam ao céu aberto. Não há nada a fazer a não ser ocupar-se da própria saúde obsessivamente. A sociedade de Berghorf, por seu isolamento físico, acaba distanciando-se dos problemas da planície e de suas regras, além de ser constituída por elementos de diversos lugares. Berghorf é microcosmo da Europa, representada pelas mesas da sala de jantar: ingleses, alemães, os russos nobres e os russos ordinários e a peculiar figura de Ludovico Settembrini, intelectual italiano humanista que toma para si a função pedagógica de censurar os devaneios de Hans Castorp. Também ocorrem palestras para os enfermos e várias delas ocupam-se do perigo que o estímulo amoroso representa para quem sofre da tuberculose. 
Se Settembrini sutilmente vai moldando o modo de pensar do nosso herói que não é herói, é a presença de Clawdia Chauchaut, cuja presença desperta nele memórias de um colega de escola por quem Castorp nutriu sua primeira paixão (um interessante momento homoerótico na narrativa que salta aos olhos do leitor moderno). Ele nutre uma paixão por Clawdia mesmo ciente da diferença de classe entre eles e que acaba arrastando-o ainda mais para dentro do universo das relações do sanatório, esse mundo estranhamente autossuficiente dos enfermos.
O universo de Berghorf está longe de ser um lugar de recato, apesar de assim se apresentar ao olho mal-treinado dos visitantes graças aos esforços dos funcionários. Na verdade, os que ali residem mantém intensa sociedade entre si, estabelecendo amizades e laços amorosos que ignoram as dinâmicas da planície. A morte, que deveria rondar essas personagens, é tratada como assunto proibido: o médico incentiva seus pacientes a morrer sem escândalos, discretamente são removidos os corpos e logo os quartos são desinfetados para receber o próximo paciente – e sangue novo é sempre motivo de agitação para os pacientes confinados. A atividade profissional de Castorp é deixada de lado assim como o livro que ele traz sobre o assunto, e lá  ele aprende a dedicar-se ao que chama de “reinar”: longas reflexões filosóficas em que começa a ponderar mais profundamente a existência. O personagem de Settembrini é crucial nesse novo hábito e exerce sua influência ao mesmo tempo em que revela na mesma intensidade a beleza e também as limitações do pensamento humanista europeu.
  Thomas Mann explora brilhantemente as contradições entre o desejo pela democracia e o impulso imperialista bélico e o desdém por culturas diferentes que ainda se fazem muito presentes no velho continente, que fermentaram e fermentam ainda hoje os principais conflitos na região. Mais tarde, somos apresentados também a outra figura intelectual contraditória, o conservador Naphta. Ele abandona suas raízes judaicas para frequentar o seminário e tornar-se jesuíta; a perseguição ao povo judeu torna-o órfão de maneira brutal e influenciam bastante sua personalidade. Figura pessimista, Naphta entende o mundo pela via teológica que lhe permitiu superar a miséria e faz pouco da ciência, que entende como apenas mais uma crença. Suas opiniões são cínicas e sua figura desagradável, mas é por meio dele que vemos alguns dos diagnósticos mais acertados dos longos debates que A montanha mágica traz. Também pretende extender sua influência pedagógica sobre Hans Castorp em um conflito que, representando as forças opostas que tomam a Europa, recebe um desfecho trágico.
  A prosa de Thomas Mann é densa e seu feito mais impressionante está em, de fato, manipular a sensação da passagem do tempo. Assim como o primeiro dia no sanatório transcorre de forma mais impactante para Castorp, toma mais páginas do livro. A prosa acelera e é pontuada por diálogos curtos quando o protagonista encontra-se com a Sra Chauchaut, em especial no único encontro romântico entre os dois que brilhantemente acontece em ritmo totalmente diferente. Apesar disso, Mann domina a ironia e arranca mesmo sorrisos de seus leitores ao demonstrar o que há de patético no grupo alienado que povoa a Montanha e em quanto se levam a sério. O narrador é onisciente, usa ocasionalmente a primeira pessoa do plural e dedica-se abertamente à Hans Castorp, julgando-o duramente e com isso, estranhamente, tornando-o mais simpático ao leitor.
  A eventual e inevitável descida à planície mal é sentida para quem lê, assim como para o personagem acontece em um estado de transe. A montanha mágica evoca a ideia de que tempo e espaço são indivisíveis em seu favor: neste lugar, os personagens não precisam cumprir seus papéis sociais e até mesmo as normas de comportamento são afrouxadas. Lá, podemos acompanhar as reinações de Castorp, mas também a apatia que a intensa atividade intelectual como fim em si mesma (ao contrário de Settembrini, por exemplo, que possui um ideal pelo qual luta dentro de seus meios) desperta na juventude. Essa juventude egoísta, doente e pouco interessada na vida prática subitamente é lançada, em estado de torpor, no campo de batalha. O simples contraste evoca a crueldade da Guerra mais efetivamente do que a descrição minuciosa de seus horrores poderia conseguir. 
A subida para a montanha mágica é íngreme. O próprio autor recomendava aos excursionistas pelo menos duas leituras para que se consiga dar conta do denso conteúdo. A primeira viagem, por mais desafiadora que seja, já consegue ser recompensadora ao seu modo e o desfecho dessa obra - que pode espantar o leitor por sua erudição - demonstra claramente que seu autor domina o gênero de maneira fascinante para quem quer entender melhor o romance e, por consequência, uma vez que o gênero está profundamente ligado com o nacionalismo e o estado burguês  europeu, o espírito do continente como um todo.  

Nota: ♥♥♥♥♥