sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Conversa de leitor: sobre desafios, metas e expectativas literárias para 2014

            Não gosto de estabelecer metas de leitura ou de ver o que leio como um número em uma lista. Um dos motivos principais para a existência desse blog foi um desejo de aproveitar melhor minhas leituras: escrever criticamente sobre o que leio fazendo com que eu articule melhor as impressões que tenho e também que eu aprofunde a leitura, mas não criar uma obrigação numérica. Porém, conforme o tempo começa a ficar mais apertado, começo a entender a motivação por trás delas.
            Lembro-me que o período de leitura mais intenso que tive foi entre os meus treze e dezesseis anos. Grande parte do que li até hoje foi lido durante esses anos; uma combinação de paixão recente, biblioteca particular de casa aguardando para ser desbravada e bastante tempo livre fez com que um livro por semana fosse o mínimo. Ao mesmo tempo em que li muito, também acabei por ler muitas coisas que não estava exatamente preparada para absorver – por exemplo, li Thomas Mann, mas não me pergunte nada sobre porque só lembro que foi bastante difícil. O que me impelia era o desafio, a vontade de ler tudo que podia. Hoje vejo que minha compreensão de muitos desses livros foi limitada pela inexperiência. Não me arrependo, pois resultou em uma formação como leitora incrivelmente completa e que me preparou bastante, além de ter me tornado uma leitora não só voraz, mas também rápida... mas sinto que algumas releituras serão necessárias.
            Se a adolescência foi um momento feliz para as minhas leituras, deparei-me com uma queda considerável depois que entrei na faculdade. Decidi prestar Letras impelida pelo amor que sentia pela Literatura e relativa facilidade com a Gramática e línguas estrangeiras. Ler tornou-se uma obrigação – que me dava prazer, mas era inescapável – e por isso deixou de ser a minha principal fonte de lazer.
            Quando terminei a Faculdade senti-me um tanto perdida e tive que recriar em mim o hábito da leitura que agora não é mais um simples divertimento, embora seja grande fonte de prazer. Estou em um ótimo momento como leitora e tenho grande vontade de reler e ler muitas obras. Por isso, hesitantemente, decidi traçar algumas metas de leitura. Não são rígidas, mas servem para me lembrar de que dedicar um tempinho aos livros sempre faz com que eu me sinta renovada e que é uma das maneiras mais eficientes que descobri até hoje de cuidar de mim mesma.
1. Colocando em números: pretendo ler no mínimo 45 livros. Contei um livro por semana e depois considerei a possibilidade de leituras mais demoradas para chegar em um número razoável. É super alcançável e estou confiante.
2.  Pelo menos 8 deverão ser livros de poesia. Mas se conseguir mais, excelente. Para alguém que ama poesia, leio muito pouco.
3.  Escrever sobre minhas leituras, especialmente as mais densas. Para esse propósito tenho, além do blog, um caderninho de anotações.
4.  Ler no mínimo um livro em inglês por bimestre, preferencialmente um livro com uma linguagem mais trabalhada. Não trabalho com o inglês e tenho que praticar sempre para não esquecer. A linguagem informal da internet não basta – praticar com livros mais “puxados” é importante!
5.  Continuar investindo na biblioteca pessoal. Um dos meus sonhos é um dia ter um cômodo dedicado só aos meus livros. Por enquanto, vou construindo meu acervo pessoal. Pretendo seguir o ritmo atual – sem exageros, mas com aquisições constantes. Aproveitar promoções é a chave para isso.
6.  Começar alguma coleção de mangá. Eu gosto bastante de ler mangás, apesar de encontrar títulos que me agradem com certa dificuldade. Em 2013 fiz três coleções e comprei um volume único. Manter esse número seria o ideal.
7.  Não deixar livros intimidarem pelo tamanho. Como não consigo ler mais de um livro ao mesmo tempo, sempre hesito antes de assumir compromisso com leituras mais demoradas... mas acabo adiando o momento de ler coisas que realmente gosto. Espero que isso aconteça menos em 2014!
8.  Ler autores contemporâneos. Tenho uma tendência a ler poucos autores que ainda estão produzindo – trocando em miúdos, leio muitos autores mortos ou que não escrevem mais   e isso sempre me frustra por não poder esperar lançamentos e perder a oportunidade de desfrutar dos prazeres de poder manter-se atualizado sobre um autor querido. Em 2013 conheci a Catherynne M. Valente, que entrou pros meus favoritos, e percebi como isso é gostoso.


São metas bem simples e espero que consiga alcançá-las. Vou dividindo os resultados por aqui, em forma de resenha, e pretendo usar também o skoob para isso. Fica o convite para discutirmos e refletirmos sobre metas de leitura e quão válidas elas podem ser. 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Mrs Dalloway, Virginia Woolf

Título: Mrs Dalloway
Autor: Virginia Woolf
Tradução: Claudio Alves Marcondes
Editora: Cosac Naify
Edição: 2ª edição, São Paulo, 2013

         Virginia Woolf é uma das mais importantes escritoras do Modernismo e sua obra uma das mais relevantes produções literárias do século XX. Entre romances, uma peça de teatro, diários, contos e ensaios, Mrs Dalloway recebe destaque como uma de suas principais realizações.
            O romance, que conta com uma das frases iniciais mais famosas da Literatura – “Mrs Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores” –, é uma obra densa, que impressiona pela precisão técnica de sua realização. Todo o enredo se passa durante um dia de junho de 1932 em que Mrs Dalloway está oferecendo uma importante festa para a alta sociedade londrina. Clarissa é uma mulher relativamente limitada: não possui habilidades das quais se orgulha, como tocar piano ou mesmo ser uma grande leitora, mas considera-se uma excelente anfitriã. E, como boa anfitriã, é ela que nos guia pela narrativa, permitindo que conheçamos os personagens que gravitam em sua órbita – Peter Walsh, sua paixão da adolescência e um dos personagens mais destacados, obcecado com a juventude e com a própria Clarissa; Sally Seton, uma amiga por quem Clarissa nutria sentimentos de tom romântico e que é lembrada como uma jovem cheia de vida e rebeldia, mas acaba se tornando uma dona de casa; Richard Dalloway, seu prático, sensato, mas também distante marido e Elizabeth, a filha do casal com inclinações políticas instiladas por sua tutora, a rígida e religiosa Miss Killman. Em paralelo também somos apresentados ao veterano da Primeira Guerra Mundial que sofre sequelas psicológicas, Septimus Warren Smith e sua mulher, a jovem e estrangeira Lucrezia.
 Septimus é um dos personagens mais importantes da narrativa, porém em momento algum existe um encontro direto entre ele e Clarissa. O momento em que ela toma consciência de sua existência é, no entanto, um dos mais pungentes da narrativa e nos permite entrever um mundo privado de Mrs Dalloway, que ela tanto se esforça para reprimir, quase se libertando... mas sendo, por fim, aquietado – pelo menos até onde o brusco encerramento permite saber.
Os recursos narrativos são inovações interessantes, trabalhando uma multiplicidade de personagens que ora são examinados com certo afastamento por um narrador onisciente, ora são expostos criticamente e por vezes tem seus pensamentos internos apresentados ao leitor por meio do uso de fluxo de consciência. Essa mudança de estratégia narrativa é feita sem nenhuma indicação ao leitor e exige atenção, mas também se apresenta com espantosa naturalidade. As personagens constantemente refletem umas sobre as outras, permitindo ao leitor uma interessante sensação de que tentativas de estabelecer uma unidade, descrição perfeita são sempre falhas, mas ao mesmo tempo inevitáveis. A sensação de que algo escapa é uma constante.
Também é constante o uso de flashbacks, que formam uma quase segunda narrativa da juventude das personagens, mesmo que extremamente fragmentada por ser exposta episodicamente. Existe uma forte oposição entre o campo e a cidade e Londres surge como uma entidade importante em Mrs Dalloway: é lugar que apresenta infinita possibilidade de encontros e que funciona como uma âncora, um marco da realidade para um livro que coloca em primeiro plano a subjetividade de suas personagens.
O uso brilhante da técnica combinado com a riqueza de temas e leituras possíveis fazem com que Mrs Dalloway seja um livro que exige muito de seu leitor – e, acima de tudo, uma vez que sua pluralidade é tão complexa e profunda, exige de seu leitor um retorno para a obra com a promessa de que uma simples leitura é insuficiente para compreender o intrincado universo construído por Virginia Woolf.

Nota: ♥♥♥♥♥ 

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Book Haul - Novembro

     Olá, pessoal. Novembro finalmente acabou e está na hora de mostrar as comprinhas desse mês. Além de ter sido um mês agitado, foi também o mês em que passei a oficialmente não ter mais espaço para livros. Os coitados estão empilhados onde dá. Uma estante pros bichinhos passou a ser uma necessidade! Vamos ver se consigo organizá-los antes de 2014 chegar. 'Bora ver o que entrou na minha coleção esse mês?
Saiu o segundo volume de Madoka Mágica! Gostei bastante do primeiro, é bem fofinho e lembra muito os animes que eu mais gostava de assistir quando era criança. ♥ 

 
    

     Ahhhh, esses livros! No começo do mês os livros da Editora Globo entraram em uma promoção muito bacana e eu aproveitei para comprar alguns. Desde meu primeiro contato, morri de vontade de ler Hilda Hilst mais a fundo e aproveitei para trazer alguns para casa. Essas edições são simplesmente lindas! Escolhi os livros pensando em exemplos de cada gênero textual: poesia (Da morte. Odes mínimas), um livro de novelas (Tu não te moves de ti) e um romance (Estar sendo. Ter Sido).
     Cartas a um jovem poeta, do Rilke, dispensa apresentações, né? Um título importante que faltava por aqui.

     Esse livro foi uma compra por impulso. Faz tempo que planejo ler algo do Junot Díaz (estava mais inclinada a ler o seu romance mais recente, This is how you lose her) e quando fui buscar em uma livraria virtual para ver o preço, vi que este estava esgotado. Fiquei preocupada de não sair uma segunda edição tão cedo e fui caçá-lo na Estante Virtual. Acabei pagando super baratinho e recebendo mais rápido ainda porque o sebo era próximo de minha cidade. Estou empolgada para ler e o estilo do autor tem tudo para me agradar!

 

     Vou confessar que essas capas coloridas da Penguin são um perigo para mim, fico desejando ter um exemplar de cada cor! Ganhei esses dois, que fazem parte da coleção "Grandes Amores". Guy de Maupassant era um autor que eu já conhecia e tinha vontade de ler mais e o outro confesso que quis pelo título, achei intrigante. 
     Meu primeiro Proust! ♥ Aproveitei a promoção da Editora Globo e comprei o primeiro volume de Em busca do tempo perdido. Agora só faltam os outros seis, né? E ler todos, claro. Mas suspeito que não vou demorar muito para ler, é um autor que sempre quis conhecer. 


     Ai ai ai, o final do ano e suas promoções fantásticas! Bom, essas foram as comprinhas do mês de novembro, pessoal. 

      Até mais e boas leituras! :)


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Alice e Ulisses, Ana Maria Machado

Título: Alice e Ulisses
Autor: Ana Maria Machado
Editora: Objetiva (Alfaguara)
Edição: 1ª edição, Rio de Janeiro, 2012.

            Alice e Ulisses é o primeiro romance adulto de Ana Maria Machado, reconhecida internacionalmente e ganhadora do Prêmio Hans Christian Andersen por sua extensa obra voltada para o público infantil. É notório também seu envolvimento com a Academia Brasileira de Letras, a qual presidiu durante o biênio 2012/2013.
            A autora demonstra em seu romance de estreia invejável desenvoltura com a linguagem que aparece simples, mas jamais superficial. Os papéis dos personagens principais remetem o leitor aos grandes personagens da literatura: Alice é uma mulher curiosa, com uma tendência a não pensar demais nas consequências de suas explorações, mas uma inteligência aguçada. É interessante também seu envolvimento com o universo infantil por meio da profissão de professora e seu gosto pelos contos de fada, que surgem pontuando os acontecimentos da narrativa. Ulisses, por sua vez, gosta da aventura e a vive com sinceridade fervorosa, mas é incapaz de abandonar a ideia do lar como lugar para o qual deve retornar. Cineasta famoso e respeitado, Ulisses encontra Alice – cujo ex-marido era crítico de cinema – em um coquetel e desde então não conseguem se desligar totalmente um do outro.
            O relacionamento é intenso e há um conflito entre as personagens que muitas vezes reflete o conflito entre o masculino e o feminino. A própria Alice, em certo momento, define o problema do relacionamento entre os dois como “político”, resultado de sua condição de mulher. Ela questiona e tenta entender o motivo dessa paixão, reclama sentir-se colonizada e esses questionamentos encaminham o livro para seu ponto alto – curiosamente, um momento que exclui Ulisses – em que Alice encontra-se frente a frente com a esposa de seu amante. Esse é um momento de ruptura para Alice, que se percebe personagem em uma encenação e não aceita se manter nessa condição. Essa ruptura se dá também na narrativa que é predominantemente em terceira pessoa, mas se encerra com um parágrafo na primeira.
            O emprego deste recurso é particularmente interessante em face da revelação que Alice faz a Ulisses de que está trabalhando em escrever sobre os dois, motivada por uma necessidade de racionalizar o relacionamento e também por sentir-se vista como personagem, como objeto de estudo de seu amante em seus filmes e ter vontade de inverter a câmera. Uma possibilidade de leitura seria, então, a de que o narrador em terceira pessoa onisciente que predomina o livro é uma face da própria Alice, analisando e editando os fatos – sua libertação enquanto narradora acontece ao mesmo tempo em que sua libertação enquanto ser humano, sua negação de manter-se fiel à tradição esperada dos relacionamentos entre homens e mulheres.
            Se a tradição é recusada no que diz respeito aos relacionamentos, é aceita no plano literário. Alice e Ulisses lança mão, sabiamente, de diversos textos clássicos e autores importantes para ancorar sua narrativa. A escolha da linguagem marcada pelo coloquial é interessante recurso, uma vez que evita dar ao texto um ar de pretensão, mas sim dando vida aos diálogos e, consequentemente, aos seus enunciadores – e aí está o maior trunfo do romance. 

Nota: ♥♥♥♥

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Clarice, Benjamin Moser

Título: Clarice,
Autor: Benjamin Moser
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: Cosac Naify
Edição: 2ª edição, São Paulo, 2013.

            Clarice Lispector sempre foi uma figura intrigante em nossa Literatura e coube a Benjamin Moser, crítico e tradutor norte-americano interessado na língua portuguesa e, em especial, em nossa Literatura, tentar traçar o mais completo perfil de uma de nossas maiores escritoras.
            A linguagem clara e a boa organização são os principais auxiliares de Moser para contar a vida de Clarice. O livro inicia-se com uma tentativa de esclarecer as circunstâncias do nascimento da autora - propositalmente obscuras graças aos esforços de Clarice, que odiava ser vista como uma escritora “estrangeira”. De origem ucraniana, a família Lispector fugiu da perseguição dos judeus e conseguiu deixar o continente europeu, porém não incólume. Clarice, que nasceu quando boa parte da rota de fuga de seus pais já estava para trás, não tinha recordações desses acontecimentos que deixaram memórias marcantes em seus pais e suas irmãs, mas ficou com muitas recordações das consequências. A pesquisa intensa de Moser prova-se frutífera para o entendimento da obra da autora ao relacionar, sabiamente, as cicatrizes que esse período deixou nos Lispector e alguns motivos recorrentes na obra de Clarice. Também relaciona à infância o gosto pela narrativa, artifício escolhido pela então menina para distrair sua mãe da dolorosa doença que culminou em sua morte, deixando as três meninas Lispector órfãs.
            Acompanhamos então o desenvolvimento de Clarice de uma criança inteligentíssima a uma jovem promissora, interessada tanto em Literatura quanto em Cálculo. Os Lispector estabelecem-se em Recife durante a infância e adolescência de Clarice, mudando para o Rio de Janeiro quando suas irmãs estão mais velhas e já trabalhando e Clarice prestes a entrar na Universidade. Gradua-se em Direito, mas dedica-se à profissão jornalística e ingressa no mundo da Literatura com a publicação de seu primeiro romance, Perto do coração Selvagem. É na Universidade que conhece o homem que viria a ser seu marido, Maury Gurgel Valente, diplomata com quem Clarice parte do Brasil para morar por alguns anos na Itália, Suíça e, por fim, nos Estados Unidos. Com ele tem dois filhos, Pedro e Paulo e durante esse período trabalha intensamente, porém encontra dificuldades para publicar seus livros. A saudade do Brasil e de suas irmãs e a frustração com a vida essencialmente doméstica levam a uma separação e o retorno ao Rio de Janeiro. É notável o respeito com que o autor aborda as relações marcantes da vida de Clarice, sejam amizades ou romances.
            Moser segue sua obra organizando-a em torno dos livros escritos e publicados por Clarice, dando ao seu leitor insight enriquecedor sobre algumas questões que interessavam a autora. É bem observada a relação do pensamento da autora com o do filósofo Spinoza, de quem foi leitora. Apesar disso, pouco é dito das leituras realizadas por Clarice – ela mesma raramente citava outros autores e essa curiosidade não é satisfeita aqui também.
 São abordados alguns de seus textos jornalísticos com a sensatez apropriada, uma vez que Clarice recusava-se a assiná-los com seu nome verdadeiro em vida apesar de agora serem publicados em coletâneas com seu nome postumamente.
A obsessão com o nome é, afinal, um dos grandes temas da autora. Resulta, principalmente, da influência que o pensamento religioso judaico, em especial seus estudos de Cabala, que se desdobra em diversos questionamentos presentes em seus escritos. A questão religiosa é apresentada com particular maestria por Moser, que resiste bravamente à tentação de simplificar o complexo pensamento presente na obra de Clarice.
O retrato pintado por Moser é fascinante e dá ao leitor uma visão rica de Clarice Lispector – jovem judia de sotaque diferente, a impecável mulher de diplomata, a mãe e escritora e, finalmente, uma autora reconhecida pelo seu país. Apesar disso, ainda fica a sensação de que algo escapa... e nenhuma sensação poderia ser tão apropriada quando o assunto é Clarice. 

Nota: ♥♥♥

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Estorvo, Chico Buarque de Hollanda

Título: Estorvo
Autor: Chico Buarque de Hollanda
Editora: Record/Altaya
Edição: Coleção Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa, 1998.

          Estorvo é o romance de estreia do compositor Chico Buarque, publicado pela primeira vez em 1991 e recebido positivamente pela crítica que premiou-o com um prêmio Jabuti de melhor romance.
       Narrado em primeira pessoa, Estorvo, acompanha seu personagem anônimo em suas ações durante uma fuga causada por um rosto misterioso que ele vê em seu olho mágico e que o perturba a ponto de decidir fugir e evitar sua própria casa. A partir desse momento o leitor percebe que terá que decifrar as informações fragmentadas que o fluxo de pensamento do personagem nos oferece sem quase nenhuma linearidade temporal. O autor tira proveito máximo desse recurso para cercar sua narrativa de uma atmosfera onírica, fazendo com que a dúvida paire no ar.
            A busca por um lugar seguro acaba como uma busca por lugares femininos – as duas principais relações mantidas pelo personagem são com sua irmã e sua ex-mulher e o apartamento de sua mãe é retomado constantemente, apesar de se apresentar sempre indisponível. Ambas as mulheres que são de fato presentes em sua vida o aceitam como se aceita alguém incapaz de cuidar de si mesmo e é essa a principal impressão que o personagem deixa em seu leitor.
            Suas ações são gratuitas, movidas pela inspiração do acaso. Suas consequências, no entanto, são reais – existe uma oscilação entre o que diz respeito ao narrador e aos personagens secundários que insinua essa distinção. Talvez essa seja a maior falha do livro: falta algo que ancore a narrativa ou pelo menos seu personagem principal que é mais do que mero estorvo para os que estão ao redor: fica difícil acreditar que suas ações não tenham nunca peso quando elas acarretam consequências tão graves para aqueles ao seu redor. Ou será que suas ações não tem peso e ele só deseja que assim seja, perdido em seus pensamentos?
            Apesar da narrativa insatisfatória em si mesma, o uso de recursos linguísticos faz com que a leitura seja agradável. A prosa marcada pela individualidade não-individual de seu narrador que é ninguém e qualquer um é  bem construída e mantida durante o livro todo por meio de uma prosa simples. Essa construção condiz harmonicamente com seu narrador que em diversos momentos devaneia hipóteses, constrói cenário e os abandona bruscamente – assim como parece abandonar tudo mais que o rodeia, porém sem que isso deixe de acrescentar ao todo uma nova informação. É nessa realização que está o alicerce do incerto romance de Chico Buarque que cumpre o que propõe desde o começo: não dar respostas ao seu leitor, perdido na perturbação de seu estorvo.

Nota: ♥♥♥

            

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe

Título: Histórias Extraordinárias
Autor: Edgar Allan Poe
Tradução: Clarice Lispector
Editora: Nova Fronteira (Saraiva de Bolso)
Edição: 1ª ed., Rio de Janeiro, 2011.


     Histórias Extraordinárias é uma coletânea de contos escritos pelo autor norte-americano Edgar Allan Poe que demonstra seu alto grau de reflexão sobre a arte da escrita em suas realizações eficientes. Em vida, Poe destacou-se em seus textos de crítica literária que demonstravam uma visão clara e informada que viria a ser definidora também de sua obra literária.
     A ideia de eficiência é uma constante para o autor, como o ensaio A filosofia da Composição permite-nos perceber. Poe acredita na construção cuidadosa, metódica e atenta de cada obra literária para que seja alcançado o efeito desejado por seu autor. Para isso, além de escolher cuidadosamente os elementos integrantes que enriqueçam o tema ou motivo escolhido como objeto– o cenário, os personagens, os símbolos – deve-se também atentar para a extensão do texto, uma vez que uma leitura interrompida tende a diluir o efeito a ser alcançado pelos recursos empregados. Sua obra é considerada parte da resposta norte-americana ao Romantismo europeu conhecida como a Literatura Gótica norte-americana. Os autores desse movimento literário aproveitavam das origens puritanas do país e das ansiedades despertadas pela sociedade em mudança para construir suas narrativas que lidavam com o lado obscuro da sociedade.
     É por isso que vemos em Histórias Extraordinárias uma série de contos curtos na extensão total e também na extensão dos períodos que os compõem – muitas vezes contando com frases formadas por apenas algumas palavras e que imprimem um ritmo crescente à leitura, criando uma tensão conforme o desfecho se aproxima. É dada preferência ao tom confessional também comum ao Romantismo da época, evidenciado na presença maior de narradores em primeira pessoa cuja incredulidade frente aos fatos narrados ecoa a reação esperada do leitor.
     Poe busca inutilizar o pensamento racional perante as incoerências da natureza – seja por meio de elementos sobrenaturais, seja por meio de personagens obsessivos, que fazem com que seu leitor questione a natureza humana em seu todo. Existe evidente cuidado na construção e manutenção de uma atmosfera opressora e sombria, das quais contos como “O gato preto” e a casa em decadência do personagem principal e “A queda da Casa de Usher”, outro lar destruído, são exemplos perfeitos. O gênero policial é explorado em contos como “Os crimes da rua Morgue” e “O coração denunciador”. As possibilidades da (pseudo)ciência da hipnose são motivo para “O Caso de Valdemar” e “Deus (Revelação Magnética)”. Merecem destaque ainda “William Wilson”, interessante reflexão sobre a identidade individual e “O retrato oval”, uma das reflexões sobre a arte mais interessantes na obra. Os contos são um conjunto de exemplos únicos da possibilidade contida dentro da Literatura que escolhe o terror como causa de sua tensão e de como aproveitá-lo para trabalhar ansiedades humanas como o medo da morte, do incompreensível e do comportamento humano quando esse se apresenta inexplicável. 

Nota: ♥♥♥♥♥

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O mágico de Oz, L. Frank Baum

Título: O mágico de Oz
Autor: L. Frank Baum
Tradução: Sérgio Flaksman
Editora: Zahar
Edição: 1ª ed., Rio de Janeiro, 2013.

     O mágico de Oz é um dos romances infantojuvenis com o maior número de adaptações da Literatura norte-americana, sendo a adaptação cinematográfica de 1939 e a adaptação musical para a Broadway escrita pelo próprio autor e constantemente reencenada as mais notáveis. O sucesso da obra fez com que o autor, L. Frank Baum, escrevesse mais livros no universo de Oz, que ganhou um total de treze aventuras.
     A narrativa acompanha as aventuras de Dorothy, uma menina órfã que mora com seus tios em pequena e cinzenta casa no Kansas. Um ciclone passa pela região e com ele parte a casa de Dorothy rumo ao desconhecido. A menina acorda em um lugar desconhecido com somente seu cachorrinho Totó como companhia e é informada por munchkins, criaturas parecidas com humanos, mas de estatura baixa, que sua casa foi a causa da morte da Bruxa Má do Leste. Decidida a encontrar uma forma de retornar para casa, decide procurar uma conferência com o grande Mágico de Oz e pedir que indique o caminho.
      Em suas aventuras Dorothy faz amizade com algumas criaturas peculiares: um espantalho recém-criado que deseja um cérebro para poder pensar como os homens, um homem de lata que deseja um coração para poder amar novamente e um leão que deseja coragem para poder se tornar, de fato, o rei da selva decidem acompanhar a menina quando descobrem sua intenção de fazer um pedido ao mago.
     Depois de passar por diversos perigos e aventuras, Dorothy e seus amigos encontram o Mágico que concorda em ajudá-los desde que todos ajudem a pequena Dorothy a matar a Bruxa Má do Oeste. Começa a segunda parte da história, onde os perigos são mais assustadores e os personagens percebem o lado obscuro da terra encantada onde estão. Dorothy cumpre sua missão, mas descobre que o Mágico de Oz não é tão poderoso quanto seus súditos inocentemente acreditavam.
     Baum foca sua narrativa nas ações constantes – curiosamente, a obra foi banida durante certo período de tempo por possuir uma heroína por trás de tanta ação, o que era considerado um mau exemplo para as meninas. O autor investe em um ritmo rápido, nas sentenças simples para prender o leitor e nas imagens marcantes que ganham ilustrações feitas por W. W. Denslow em um estilo marcante e inovador.
     Os desejos muito humanos dos personagens de Baum – serem reconhecidos pela coragem, pela inteligência, sentirem amor marcam a obra que tem como moral a ideia de que é a insegurança que nos impede de experienciar nossos desejos. Não analisar minuciosamente sentimentos e motivações é a prerrogativa desse mundo impelido pela ação e que, por isso, esconde suas mensagens até mesmo de seus protagonistas.
     E é por isso que Dorothy deseja retornar para sua casa, mesmo sabendo que a vida lá não é tão encantada quanto no país de Oz ecoando os sentimentos do leitor jovem que deseja conhecer o encantado mesmo imaginando seus perigos e do leitor mais velho deseja voltar para o país da infância escolhendo ignorar que é a luz da nostalgia que o torna tão convidativo.

Nota: ♥♥♥♥

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Enquanto Agonizo, William Faulkner

Título: Enquanto Agonizo (As I lay dying)
Autor: William Faulkner
Tradução: Wladir Dupont
Editora: L&PM Pocket
Edição: 1ª ed., Porto Alegre, 2009.


     Enquanto Agonizo é um romance do autor norte-americano William Faulkner. Sua escrita é marcada fortemente por suas origens – nascido e criado no Sul dos Estados Unidos, Faulkner inspirou-se na região e em sua identidade cultural para criar a fictícia Yoknapatawpha onde se passam diversas de suas obras, inclusive O som e a fúria, seu romance mais famoso. Sua produção extensa conta com 13 romances, um volume de contos, peças teatrais e créditos como roteirista de cinema. Apesar disso, passou por algumas dificuldades ocasionadas principalmente por sua batalha com o alcoolismo. Foi o interesse de autores franceses como Camus e Sartre que reavivou a discussão em torno de sua obra. Faulkner recebeu um prêmio Nobel por sua colaboração à literatura em 1949, além de ter sido receptor de dois prêmios Pulitzer – um por A fábula e outro por Os invictos, seu último romance.
     O estilo de Faulkner é marcado por um pendão experimental combinado com um olhar meticuloso que resulta em uma prosa vívida e que impõe ao leitor seu ritmo calculado e eficiente. Em Enquanto Agonizo – título que faz referência a um verso da Odisseia de Homero - o autor lança mão do recurso do fluxo de consciência brilhantemente, dando voz à 15 diferentes personagens e, assim, acrescentando detalhes que transformam a narrativa em um vislumbre fascinante da interioridade do ser humano, profundamente marcada por um contexto árido e de privação.
     O romance acompanha a viagem realizada pela família Brunden para realizar o último pedido de Addie, a matriarca: ser enterrada em Jackson, cidade de onde veio e onde estão seus parentes. A família é formada por Anse, o pai que é sempre ajudado por seus vizinhos e aparentemente pouco afeito ao trabalho braçal; Cash, o filho mais velho que trabalha como carpinteiro; Darl, segundo filho do casal que passa por grandes turbulências psicológicas durante a viagem e que é o narrador responsável por mais capítulos; Jewel, fruto de um caso de Addie com pastor Whitfield e que, por isso, destoa de seus irmãos e é o favorito da mãe; Dewey Dell, a única filha mulher que tem uma ligação única com a mãe e é atormentada por uma gravidez indesejada e Vardaman, a única criança da família.
      A narrativa inicia com os preparos da família para cumprir o desejo final de Addie, com Cash preparando com as próprias mãos o caixão da mãe em frente à janela onde ela repousa no leito em que morrerá. Os vizinhos visitam a família para oferecer ajuda, mas com a morte da matriarca, só resta partir de Yoknapatawpha. A família enfrenta a distância aumentada graças à destruição causada pela tempestade que caiu no dia da morte de Addie em uma carroça em condições precárias.
      O tempo da narrativa possui alguma linearidade, porém essa não é rigorosa, uma vez que os personagens lembram-se de acontecimentos passados em flashbacks e mesmo os eventos recentes são constantemente retomados, especialmente quando há mudança do narrador – o que acontece ao término de cada capítulo. Em um dos pontos altos da obra, qualquer pretensão de linearidade é abandonada para dar lugar a um capítulo narrado por Addie em que conhecemos melhor a personagem e sua relação com o marido, os filhos e a vida. Esse capítulo é marcado também por uma pequena, mas fascinante reflexão metalinguística sobre a natureza das palavras e sua inutilidade perante a dureza da vida.
    O autor consegue dar voz distinta a cada uma das personagens e nisso está a maior realização do romance: da voz peculiarmente consciente de Darl a obsessiva repetição de justificativas de Anse, cada personagem possui sua identidade própria e por meio da expressão de sua visão única enriquece o retrato dos Brunden - que permite, por sua vez, uma reflexão profunda sobre a existência humana que faz com que o título de uma das obras mais importantes do século XX seja merecido.

Nota: ♥♥♥♥♥

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Graphic MSP Turma da Mônica - Laços, Vitor e Lu Cafaggi

Título: Graphic MSP Turma da Mônica - Laços
Autores: Vitor e Lu Cafaggi
Editora: Panini Comics
Edição: 1ª ed., São Paulo, 2013.


     É difícil encontrar uma criança que tenha crescido em meio letrado no Brasil e não conheça os quadrinhos da Turma da Mônica. Criação de Maurício de Sousa, as tirinhas surgiram em jornais e, com o tempo, ganharam destaque e caíram no gosto do público brasileiro. O universo de Maurício de Sousa conta, atualmente, com quinze diferentes turmas, mas Mônica ocupa lugar de destaque em nossa memória coletiva, especialmente para quem viveu a infância nas décadas de 70, 80 e 90. Além das revistinhas, os personagens ganharam bonecos, tornaram-se garotos propagandas de todo tipo de marca, estrelaram longa-metragem e tiveram como lar seu próprio parque de diversões – que foi um passeio escolar obrigatório para as crianças paulistas e existiu entre os anos de 1993 e 2010. Nos anos 00, mais especificamente em 2008, a marca passou por uma revitalização e com ela surgiu uma nova linha para as histórias de Mônica e seus amigos: a Turma da Mônica Jovem, gibis publicados em forma de mangá contando as aventuras da turminha agora adolescente. O sucesso foi imediato e novos leitores foram atraídos, mas havia certa resistência por parte dos leitores que cresceram com a turminha do bairro do Limoeiro.
     Em 2010, surgiu o projeto MSP 50 e sua continuação, MSP +50, em que diversos artistas brasileiros - desde nomes conhecidos como Laerte e Ziraldo até artistas relativamente novos no mercado - foram convidados a publicar releituras das histórias da Turma da Mônica. E, para reconquistar de uma vez por todas o leitor nostálgico dos quadrinhos de Maurício de Sousa e celebrar o sucesso das releituras, surgiu o projeto Graphic MSP. Já foram publicadas Astronauta Magnetar, de Danilo Beyruth, Terror Espaciar, de Gustavo Duarte e Laços, de Lu e Vitor Cafuggi.
     Os dois irmãos ficaram responsáveis pela história dos personagens do universo de Maurício de Sousa mais queridos pelo público e deram conta do recado. Aproveitando elementos clássicos das historinhas – o que amarra a trama de Laços é um dos planos infalíveis de Cebolinha – a HQ consegue trazer uma leitura original, mas iluminada pelo brilho da nostalgia que é sugerido pelas cores e faz parte da narrativa em si na forma das recordações dos personagens que permeiam a HQ em belíssimas ilustrações.
     Acompanhamos os personagens em uma aventura um tanto diferente: dessa vez a turma do bairro do Limoeiro se une para ajudar Cebolinha a procurar Floquinho após seu sumiço súbito. Como as primeiras tentativas provam-se vãs, a turminha, seguindo uma pista, decide procurá-lo em um bairro distante. Enfrentam a turma do bairro de lá e os perigos da noite longe de casa. As diferenças dos personagens são deixadas de lado e, em seu lugar, a narrativa celebra a sensação de família e união que existe entre as crianças.
     Visualmente, Mônica, Cascão, Magali e Cebolinha são facilmente identificáveis, mas elementos novos surgem. Nota-sel, em especial, a escolha de retratar Mônica como visivelmente mais gordinha que seus amigos. Nas histórias em quadrinho de Maurício de Sousa, o leitor sabe que ela é perseguida por conta de seu peso, mas sua aparência não difere muito de seus amigos. É interessante a escolha de trazer esse elemento para o plano visual, permitindo que os leitores mais novos possam se identificar ainda mais com a heroína que continua a criança mais forte do bairro e acaba testando sua força longe de casa também. É interessante também observar que cada um dos irmãos Cafaggi ficou responsável por diferentes partes da narrativa – Lu ilustra as memórias das crianças enquanto Vitor ilustra o momento em que a ação acontece. Os estilos dos dois são diferentes, mas se complementam harmoniosamente no todo da obra. O desfecho é feliz e o leitor deixa a releitura dos irmãos Cafaggi com a satisfação de ter revisto velhos amigos com novidades agradáveis para encantar. O cuidado físico com a edição também merece destaque, além da atenciosa inclusão de páginas que dividem com o leitor um pouco do processo de (re)criação da HQ.

Nota: ♥♥♥♥

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

The Girl Who Circumnavigated Fairyland In A Ship Of Her Own Making, Catherynne M. Valente

Título: The Girl Who Circumnavigated Fairyland In A Ship Of Her Own Making
Autora: Catherynne M. Valente
Editora: Square Fish (Macmillan)
Edição: 1ª ed, New York, 2012
Para ler mais sobre a autora conheça seu site onde estão disponíveis algumas de suas obras e trabalhos críticos.


     The Girl Who Circumnavigated Fairyland In A Ship Of Her Own Making é o primeiro de cinco livros da série Fairyland, escrita pela autora americana Catherynne M. Valente e ilustrada por Ana Juan, e também sua primeira obra voltada para o público infantil estreou em oitavo lugar na lista dos mais vendidos do New York Times. Até o presente momento, duas das sequências já foram publicadas - The Girl Who Fell Beneath Fairyland and Led the Revels There (2012) e The Girl Who Soared Over Fairyland and Cut the Moon in Two (2013) e uma prequel, chamada The Girl Who Ruled Fairyland—For a Little While foi publicada em 2011. No Brasil foi publicada uma tradução do primeiro livro sob o título A Menina Que Navegou Ao Reino Encantado Em Um Barco Que Ela Mesma Fez pela editora Leya. A autora possui uma extensa lista de obras publicadas, entre elas romances, poesias e coletâneas de contos e nelas podemos perceber a recorrência de temas retirados do universo do folclore de diversos países, temas mitológicos e forte influência de contos de fadas.
     Em The Girl Who Circumnavigated Fairyland In A Ship Of Her Own Making a prosa rebuscada e lírica de Valente dá colorido ao mundo encantado desvendado por sua heroína, a pequena September. Convidada pelo Green Wind a abandonar a realidade solitária de filha de uma mãe que trabalha fora para sustentar a casa (exercendo função de mecânica e cujo gosto por motores provará ser importante durante a narrativa) e um pai soldado e, por isso, bastante ausente, September aceita embarcar rumo ao desconhecido munida apenas do conhecimento que adquiriu por meio de suas leituras. O narrador em terceira pessoa é onisciente e dirige-se ao leitor em vários momentos, ora para ironizar as crenças de September, ora para lembrar seu leitor de que está consciente das expectativas que ele – ecoadas pela personagem principal que também identifica-se como leitora – tem a respeito das narrativas infantis fantásticas.
     September recebe das bruxas Hello, Goodbye e do Wairwulf Manythanks (uma espécie de lobisomem que só é homem durante a lua cheia) a missão de resgatar uma colher roubada pela maligna Marquesa de Fairyland. Como September sabe que toda protagonista de uma história que se preze deve ter uma missão, aceita. Em suas andanças pelo reino faz amizade com criaturas como o Wyvern (uma criatura parecida com um dragão, mas dócil) A-through-L, com Saturday, um Marid que September resgata das garras da Marquesa e uma lâmpada chamada Gleam. Em sua primeira missão September acaba por receber outra e por decidir enfim tentar cumprir uma que impõe a si mesma e é tão clássica quanto poderia ter desejado: derrubar uma governante maldosa.
     É notável a influência de clássicos da Literatura Infantil na obra. Histórias como as de Alice no País das Maravilhas, O mágico de Oz e As Crônicas de Nárnia exercem forte influência e são, por vezes, homenageadas em Fairyland. O reino encantada de September se apresenta como o lugar onde todas essas narrativas se passaram, a terra para onde vão as crianças que escapam brevemente de nosso mundo. A edição do selo Square Fish conta com uma entrevista com a autora em que ela revela ser sua intenção com Fairyland trazer uma protagonista que toma para si mesma a magia, ao invés de voltar para a casa no final de sua aventura. Por meio de uma releitura menos sombria do mito de Perséfone, Valente faz questão de mostrar que o mundo de Fairyland torna-se parte inexpugnável da vida de September.
     Catherynne M. Valente coloca toda a força de sua narrativa sobre os ombros da pequena, mas forte September. A protagonista precisa sobreviver grandes perigos, derrotar inimigos poderosos e demonstrar seu valor para sobreviver ao mundo das fadas – que por mais fascinantes que sejam, não são confiáveis. Despede-se de sua própria sombra, do conforto, de seus longos cabelos negros e, por fim, da possibilidade de abandonar os desafios mortais de Fairyland e voltar para casa em seus esforços para salvar seus amigos e as criaturas mágicas que conhece. September recebe ajuda, mas jamais é resgatada. E é usando seus próprios punhos que consegue, enfim, ver todos que lhe são caros em segurança.
     A capa da edição americana de Fairyland conta com uma citação de Neil Gaiman que resume perfeitamente o exercício realizado por Valente com a obra: a busca de um “glorioso equilíbrio entre modernidade e o conto de fada vitoriano, alcançado com sentimento e sabedoria”. A autora doma a força do conto de fada com o vigor de sua prosa e seu olhar crítico que escolhe, sabiamente, onde deixar sua própria marca no curso do rio das narrativas míticas – sempre iguais, mas sempre diferentes. September é uma protagonista memorável em suas qualidades e suas falhas; hesita, mas mantêm-se leal; apaixona-se por seu novo mundo só para perceber que ama o antigo. Temas como a relação com os pais, com o próprio corpo, a nudez, a vaidade e o desejo de descobrir seu potencial e viver uma vida que ultrapasse a banalidade tornam a personagem humana e fazem com que ela ecoe com os leitores mais novos... e com os mais velhos também.

Nota: ♥♥♥♥


terça-feira, 10 de setembro de 2013

Risíveis amores, Milan Kundera

Título: Risíveis Amores
Autor: Milan Kundera
Tradução: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca
Editora: Companhia de Bolso
Edição: 1ª ed., São Paulo, 2012.

     Risíveis Amores é uma coletânea de contos escritos pelo autor tcheco Milan Kundera entre os anos de 1959 e 1968 e publicados juntos pela primeira vez no ano de 1969. O título indica o principal tema das narrativas: o amor e o que ele tem de ridículo em sua pretensão de ser sério.
     Nos contos podemos perceber vários temas que são caros para o autor e aparecem também em seus romances: a gratuidade da vida e o ridículo como resultado dela, as relações entre o corpo e a mente, entre a memória e o esquecimento, o sério e o cômico, o peso e a leveza, o desejo sexual que traduz desejo pela vida e pela juventude e a questão da identidade que marcam toda sua reflexão filosófica - característica marcante de suas obras que apresentam na mesma medida humor negro e uma prosa rica.
      Esses temas permeiam todas as narrativas que são apresentadas para o leitor em sete contos: “Ninguém vai rir” mostra as consequências da obstinação do narrador-personagem em não escrever um parecer acadêmico – uma negação simples que vai ganhando desdobramentos cada vez mais absurdos; “O pomo de ouro do eterno desejo” conta também com um narrador em primeira pessoa, porém que se coloca como observador e narra as quase aventuras de seu amigo mulherengo, porém fiel; “O jogo da carona” é o primeiro conto em terceira pessoa do livro e narra a viagem de dois namorados que, a princípio brincando, decidem fingir serem desconhecidos e acabam percebendo o que existe de desconhecido no outro.
      “O Simpósio” é o conto que ocupa posição central na obra e também o maior em extensão. Divide-se em atos e há uma presença maior de diálogos em que as personagens, médicos em um congresso, discutem sobre o amor. É introduzido o personagem de Dr. Havel, psicólogo especializado em sexualidade e casado com uma jovem atriz e que reaparece em outro conto do livro. Nesse conto, reflete sobre a impossibilidade de ser Don Juan em um mundo onde tudo é possível... a figura de Don Juan acaba por se tornar risível, parecendo mais Don Quixote.
     Segue então outro bloco de contos: “Que os velhos mortos cedam lugar aos novos mortos” narra na terceira pessoa o reencontro de um casal que se envolveu brevemente no passado quando a mulher viaja para verificar a situação do túmulo de seu falecido marido; “O Dr. Havel vinte anos depois” mostra-nos o personagem rumo a um tratamento de saúde em termas isoladas e encarando o peso que a idade traz para sua exploração da sexualidade. A presença breve de sua jovem e famosa esposa, no entanto, muda o cenário. “Eduardo e Deus”, por fim, narra a chegada de Eduardo à pequena cidade onde trabalhará como professor e seu envolvimento com a jovem e devota Alice que encara o sexo como pecado. Em seu afã para seduzi-la, Eduardo decide fingir acreditar em Deus. Isso, no entanto, o prejudica em seu serviço e o coloca à mercê da velha e feia diretora da escola. Aqui temos a introdução do narrador em terceira pessoa que faz digressões filosóficas e dirige o olhar do leitor de forma incisiva para as palavras que formam o personagem que consagraram o estilo do autor.
     As narrativas funcionam todas independentemente, mas também podem ser interligadas pela recorrência de personagens e de motivos. A prosa do autor é marcada pela leveza e ironia alcançada por meio de uma relativização do tema que trabalha para revelar a vida como arbitrária e, por isso, mostra como inútil a presunção de levá-la com seriedade. Sobre a obra, Milan Kundera afirma ser o registro de quando encontrou sua voz, sua identidade e os temas que ecoariam no todo de sua obra e, realmente, não há nenhum resquício de insegurança nas bem polidas e bem realizadas narrativas que o autor apresenta – um ótimo livro para introduzir ao leitor o universo de Kundera. 

Nota: ♥♥♥♥♥