segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Eu sou um gato, Natsume Soseki

Título: Eu sou um gato
Autor: Natsume Soseki
Tradutor: Jefferson José Teixeira
Edição: São Paulo: Estação Liberdade, 2008.

            Eu sou um gato é a obra de estreia do modernista Natsume Soseki, professor de inglês por formação que, com o sucesso da publicação em folhetins no ano de 1905 e posteriormente revisada e publicada como livro, engata uma carreira literária prolífica. Escreveu também sobre teoria literária, além de ser um astuto observador da classe intelectual japonesa, alvo principal de sua narrativa de estreia.
            Não há nada de metáforico no título: o narrador da obra é, de fato, um gato sem nome que dá sua superioridade aos seres humanos como um fato óbvio e pouco preocupa-se com fornecer-nos explicações acerca de sua condição de gato escritor. Ao invés disso, durante os onze capítulos que compõe sua obra, delicia-se em descrever, com minúcias, a estupidez dos humanos que encontra – em especial, de seu amo, o preguiçoso Kushami.
            Kushami funciona como uma espécie de alter-ego de Soseki, que tempera sua obra com referências a autores da época com quem tinha amizade e com experiências suas que aparecem transfiguradas na vida do professor Kushami. As notas de rodapé incluídas na edição são essenciais para que a compreensão do jogo feito por Soseki e a edição da Estação Liberdade supre as necessidades do leitor ocidental pouco familiarizado com a Literatura japonesa.
            O livro não deve, no entanto, assustar o leitor por pertencer a uma tradição com que o público brasileiro tem pouca familiaridade. O compromisso com o modernismo garante terreno comum suficiente para que a obra seja desfrutada sem problemas e é fácil para o leitor admirar a prosa elegante e certeira de Soseki, que debocha do discurso intelectual ao colocá-lo como fruto do intelecto de um gato com tendências filosóficas cujo objeto de estudo são experiências prosaicas. A ironia também é recurso constante e bem empregado, uma vez que Kushami e seu círculo de amizades é retratado como patético constantemente pelo narrador felino.
            Kushami é professor de inglês em uma escola para meninos e, apesar de dedicar-se pouco ao seu cargo, ser visto com estranheza por seus colegas e ridicularizado por seus alunos, enxerga-se como um intelectual. Constantemente embarca em tentativas frustradas de produzir arte, seja escrita ou pintura, apenas para alcançar resultados medíocres. É casado, possui três filhas e vive de aluguel em uma casa mal-cuidada. Seu amigo mais próximo é o esteta Meitei. Enquanto Kushami leva a si mesmo a sério, Meitei é o oposto: bonachão e mentiroso, suas histórias são sempre absurdas e exageradas. Há, ainda, Kangetsu, jovem discipulo dos dois que ensaia seguir o mesmo caminho, porém ao invés de dedicar-se às artes, dedica-se ao estudo de questões inúteis da física – que, proclama, é o futuro da intelectualidade. Um dos acontecimentos que amarram a narrativa envolve seu potencial casamento com a filha do próspero comerciante Kaneda, cuja inescrupulosidade típica dos comerciantes irrita profundamente ao inerte professor.
            Outro fio que percorre toda a obra é a reflexão acerca da tensão entre o modo de vida ocidental e oriental, fruto da abertura do Japão durante a era Meiji e também sentida profundamente pelo autor em sua experiência estudando na Inglaterra. A valorização da individualidade como expressão máxima típica da cultura ocidental em muito difere da valorização da comunidade e na busca de um “eu” sem artíficios como refúgio do oriente: em certo ponto, Soseki ilustra a questão afirmando que, frente a uma situação desconfortável, a cultura ocidental manda que busquemos mudá-la, enquanto a oriental manda que mudemos a nós mesmos para que essa situação deixe de nos incomodar.
            Há, no entanto, qualquer ranço de resistência que é simples fruto da diferença geracional que o próprio autor parece ter consciência especialmente fácil de perceber no tratamento das personagens femininos. A elas fica delegado o mundo das decisões práticas – uma vez que, na cultura japonesa, a economia do lar é responsabilidade das mulheres – e se são vistas com certo desprezo, retornam o favor na mesma moeda. Enquanto os personagens insinuam uma culpa ocidental para as mudanças de temperamento e maior liberdade das mulheres, a total inoperância masculina exposta no romance sugere uma necessidade de ordem muito mais próxima, até porque os conhecimentos das mulheres acerca da cultura ocidental é limitado pela educação recebida nas escolas femininas.
            O ritmo da obra só é prejudicado por, em alguns momentos, estender-se demais em digressões do narradoe. Estas, no geral, funcionam melhor quando inseridas em um contexto de ação e observação direta. O trabalho de tradução, revisão e pesquisa feitos pela Estação Liberdade é louvável e garante que a leitura flua até mesmo para quem tem pouca familiaridade com a cultura japonesa. Eu sou um gato é um romance interessante, que experimenta, mas também que preocupa-se em manter uma prosa instigante em seu olhar curioso acerca das trivialidades que fazem a vida cotidiana, transformando-a numa expressão interessante do modernismo japonês.

Nota:  ❤❤❤❤