Autor: Liev Tolstói
Tradutor: Rubens Figueiredo
Edição: São Paulo: Cosac Naify, 2013.
Anna
Kariênina é um clássico da literatura russa desses que a maioria dos leitores
assíduos pelo menos já ouviu falar, seja pelo seu famoso uso de foreshadowing ou pela igualmente famosa
frase que abre o romance. A obra, sucessora de Guerra e Paz, foi publicada pela primeira vez como folhetim, entre
1873 e 1877, porém só recebeu o desfecho planejado por Tolstói no ano seguinte,
1878 e conta com oito partes acompanhando, paralelamente, momentos decisivos da
vida da personagem que lhe dá o título e de Liévin.
Para
tanto, o romance emprega um narrador onisciente e opera em cima da oposição
entre seus dois protagonistas e dos personagens em seus círculos sociais, o que
faz com que a diferença do foco narrativo reflita em ritmos e conflitos
distintos conforme Anna vai traçando seu destino em direção oposta ao de
Liévin. Como os dois personagens gravitam na órbita da mesma roda de alta
sociedade, isso faz com que o leitor antecipe o encontro dos dois – momento a
partir do qual aceleram seus passos rumo ao seu desfecho inescapável.
Não
há como negar que a figura de Anna é quem, de fato, segura a obra. De beleza extraordinária
e criação um tanto resguardada, Anna é casada com Alexei Karenin, um homem bem
mais velho cuja vida é dedicada ao serviço público. Com ele tem um filho,
Serioja. Se, nos primeiros capítulos, somos apresentados a uma mulher púdica e
religiosa, capaz de salvar o casamento levianamente comprometido de seu irmão,
o fútil Óblonski, a ida a um baile na cidade e o encontro com conde Vrónski
lançam-na em um intenso conflito interno, destruindo suas certezas e
impondo-lhe urgência até então desconhecida.
O
que faz de Anna uma personagem fascinante é o tratamento realista que recebe e
faz dela personagem complexa. Conseguimos simpatizar com seu desejo de fuga e de
experimentar a vida em sua totalidade, sua dor pelas imposições que sofre e a
sutil tomada de consciência a respeito de si mesma, talvez seu aspecto mais
fascinante. Anna percebe-se não só bela, mas inteligente, capaz de manter
conversação e apaixonante. Nada disso era procurado nela por Karenin, que
desejava somente uma esposa modesta que exercesse seu papel discretamente. Se essa
tomada de consciência torna o casamento uma situação infernal, não serve no
entanto de consolo em seu relacionamento com Vrónski. A culpa cristã que
Tolstói imbui em sua heroína jamais a abandona totalmente e seu medo de se ver desamparada, sem uma figura masculina que por ela assuma responsabilidade
resulta em um comportamento destrutivo e um final trágico.
É
interessante como Tolstói constrói uma personagem que exemplifica o processo de
destruição interna da mulher em uma sociedade que não lhe permite usar seus
dons ou agir livremente sem em nenhum momento imaginar que é nessa tremenda pressão
que está o problema. O autor ainda apresenta-nos o avesso de Anna na esposa de
Liévin, personagem estranhamente deprimente: Kitty é uma jovem limitada em sua
beleza e em sua capacidade intelectual, também mantida ao alcance mas nunca
próxima de verdade de seu marido. Ao contrário de Anna, dedica-se totalmente à
vida em sua faceta mais prática e aos fazeres tradicionalmente femininos, em
especial cuidar e velar os outros. Ela é o modelo de esposa cujo desfecho
parece indicar o comportamento mais saudável, mas isso acontece às custas de
sua complexidade enquanto pessoa ser reduzida à sua habilidade de cuidar e
doar-se.
Liévin,
nosso outro protagonista, é amigo muito próximo de Oblónski, apesar de ter personalidade totalmente diferente da dele.
Proprietário de terras, dedica-se ao serviço do campo, cuidando de sua herança
e de seus irmãos. Introspectivo e dado a longas reflexões, mas pouco eloquente,
é marcado por um desejo de imprimir alguma ordem ao mundo e às relações
sociais. Não se sente confortável na alta sociedade, apesar de ser aceito nela.
Possui uma relação intensa com seus dois irmãos: um é escritor famoso e o outro
perde-se na bebida e ambos são queridos por ele.
O
que aproxima nossos dois protagonistas é um desejo de escapar ao artifício, ao
fingimento socialmente imposto. Ambos querem, de alguma forma, alcançar uma
forma de vida mais autêntica e livre. Anna acredita que ignorando as regras
sociais e vivendo um amor intenso, conseguirá livrar-se do papel ao qual foi
condenada por nascimento, sem perceber que começa a exercer um novo no
imaginário da sociedade e do leitor: o da escandalosa mulher adúltera. Liévin
acredita também na redenção pelo amor, mas o faz como manda o figurino e
encontra na constituição de família e, mais tarde, na religião, um conforto que
não elimina todas suas dúvidas, mas lhe parece o único compromisso possível. Se
a prosa que acompanha Anna é um crescendo de tensão, encerrado por um fim
trágico, a que acompanha Liévin mantém ritmo oposto culminando em um desfecho
anticlimático.
O
universo de Anna Kariênina é
ricamente povoado por diversos outros personagens que nos apresentam reflexões
acerca da vida em sociedade, em geral repudiada por sua superficialidade. Há
extensas reflexões sobre a identidade russa, em especial no que tange a questão
da terra e da relação com os servos (uma das obsessões que Liévin e Tolstói
parecem compartilhar) que, se arrastam um pouco a narrativa, apresentam um
panorama interessante de um país cuja posição geográfica e a cultura dão-lhe
uma posição interessante em relação ao Ocidente.
Nota: ❤❤❤❤