terça-feira, 18 de abril de 2017

Anna Kariênina, Liev Tolstói

Autor: Liev Tolstói
Tradutor: Rubens Figueiredo
Edição: São Paulo: Cosac Naify, 2013.

            Anna Kariênina é um clássico da literatura russa desses que a maioria dos leitores assíduos pelo menos já ouviu falar, seja pelo seu famoso uso de foreshadowing ou pela igualmente famosa frase que abre o romance. A obra, sucessora de Guerra e Paz, foi publicada pela primeira vez como folhetim, entre 1873 e 1877, porém só recebeu o desfecho planejado por Tolstói no ano seguinte, 1878 e conta com oito partes acompanhando, paralelamente, momentos decisivos da vida da personagem que lhe dá o título e de Liévin.
            Para tanto, o romance emprega um narrador onisciente e opera em cima da oposição entre seus dois protagonistas e dos personagens em seus círculos sociais, o que faz com que a diferença do foco narrativo reflita em ritmos e conflitos distintos conforme Anna vai traçando seu destino em direção oposta ao de Liévin. Como os dois personagens gravitam na órbita da mesma roda de alta sociedade, isso faz com que o leitor antecipe o encontro dos dois – momento a partir do qual aceleram seus passos rumo ao seu desfecho inescapável.
            Não há como negar que a figura de Anna é quem, de fato, segura a obra. De beleza extraordinária e criação um tanto resguardada, Anna é casada com Alexei Karenin, um homem bem mais velho cuja vida é dedicada ao serviço público. Com ele tem um filho, Serioja. Se, nos primeiros capítulos, somos apresentados a uma mulher púdica e religiosa, capaz de salvar o casamento levianamente comprometido de seu irmão, o fútil Óblonski, a ida a um baile na cidade e o encontro com conde Vrónski lançam-na em um intenso conflito interno, destruindo suas certezas e impondo-lhe urgência até então desconhecida.
            O que faz de Anna uma personagem fascinante é o tratamento realista que recebe e faz dela personagem complexa. Conseguimos simpatizar com seu desejo de fuga e de experimentar a vida em sua totalidade, sua dor pelas imposições que sofre e a sutil tomada de consciência a respeito de si mesma, talvez seu aspecto mais fascinante. Anna percebe-se não só bela, mas inteligente, capaz de manter conversação e apaixonante. Nada disso era procurado nela por Karenin, que desejava somente uma esposa modesta que exercesse seu papel discretamente. Se essa tomada de consciência torna o casamento uma situação infernal, não serve no entanto de consolo em seu relacionamento com Vrónski. A culpa cristã que Tolstói imbui em sua heroína jamais a abandona totalmente e seu medo de se ver desamparada, sem uma figura masculina que por ela assuma responsabilidade resulta em um comportamento destrutivo e um final trágico.            
            É interessante como Tolstói constrói uma personagem que exemplifica o processo de destruição interna da mulher em uma sociedade que não lhe permite usar seus dons ou agir livremente sem em nenhum momento imaginar que é nessa tremenda pressão que está o problema. O autor ainda apresenta-nos o avesso de Anna na esposa de Liévin, personagem estranhamente deprimente: Kitty é uma jovem limitada em sua beleza e em sua capacidade intelectual, também mantida ao alcance mas nunca próxima de verdade de seu marido. Ao contrário de Anna, dedica-se totalmente à vida em sua faceta mais prática e aos fazeres tradicionalmente femininos, em especial cuidar e velar os outros. Ela é o modelo de esposa cujo desfecho parece indicar o comportamento mais saudável, mas isso acontece às custas de sua complexidade enquanto pessoa ser reduzida à sua habilidade de cuidar e doar-se.
            Liévin, nosso outro protagonista, é amigo muito próximo de Oblónski, apesar de  ter personalidade totalmente diferente da dele. Proprietário de terras, dedica-se ao serviço do campo, cuidando de sua herança e de seus irmãos. Introspectivo e dado a longas reflexões, mas pouco eloquente, é marcado por um desejo de imprimir alguma ordem ao mundo e às relações sociais. Não se sente confortável na alta sociedade, apesar de ser aceito nela. Possui uma relação intensa com seus dois irmãos: um é escritor famoso e o outro perde-se na bebida e ambos são queridos por ele.
            O que aproxima nossos dois protagonistas é um desejo de escapar ao artifício, ao fingimento socialmente imposto. Ambos querem, de alguma forma, alcançar uma forma de vida mais autêntica e livre. Anna acredita que ignorando as regras sociais e vivendo um amor intenso, conseguirá livrar-se do papel ao qual foi condenada por nascimento, sem perceber que começa a exercer um novo no imaginário da sociedade e do leitor: o da escandalosa mulher adúltera. Liévin acredita também na redenção pelo amor, mas o faz como manda o figurino e encontra na constituição de família e, mais tarde, na religião, um conforto que não elimina todas suas dúvidas, mas lhe parece o único compromisso possível. Se a prosa que acompanha Anna é um crescendo de tensão, encerrado por um fim trágico, a que acompanha Liévin mantém ritmo oposto culminando em um desfecho anticlimático.
            O universo de Anna Kariênina é ricamente povoado por diversos outros personagens que nos apresentam reflexões acerca da vida em sociedade, em geral repudiada por sua superficialidade. Há extensas reflexões sobre a identidade russa, em especial no que tange a questão da terra e da relação com os servos (uma das obsessões que Liévin e Tolstói parecem compartilhar) que, se arrastam um pouco a narrativa, apresentam um panorama interessante de um país cuja posição geográfica e a cultura dão-lhe uma posição interessante em relação ao Ocidente.
            A prosa de Tolstói, assim como sua mensagem, foge de artifícios exagerados. O autor investe em um uso eficiente do foco narrativo e do diálogo na construção de personagens marcantes que pintam uma imagem clara da análise feita pelo autor da sociedade russa. Sua preocupação moral não ignora a complexidade da situação, mas as encara como imutáveis e por isso mesmo acaba pecando por ser um tanto forçada e envelhecendo mal – o que é sentido principalmente no último capítulo do livro, em que a narrativa, ao perder o impulso do conflito que a conduziu, afrouxa demais e termina em uma reflexão anticlimática que falha em dialogar de fato com as questões apresentadas ao longo da obra.

Nota: ❤❤❤❤

quarta-feira, 15 de março de 2017

O verão sem homens, Siri Hustvedt

Autor: Siri Hustvedt
Tradução: Alexandre Barbosa de Souza
Edição: São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

A norte-americana Siri Hustvedt é ficcionista e ensaísta contemporânea e tem encontrado público cativo para seus romances, que são focados na questão da experiência feminina na sociedade como brecha para a reflexão acerca dos relacionamentos humanos e sua complexidade. 
A narradora de O verão sem homens, Mia,  tem plena consciência da banalidade de seu drama. Doutora em filosofia e poeta publicada com modesta, mas respeitável recepção, ela enfrenta o possível fim de seu casamento de trinta anos com Bóris, neurocientista. Após descobrir ter sido traída, Mia surta e é hospitalizada – para sua própria vergonha, uma vez que a marca definidora desta personagem é sua lucidez – e precisa reconstruir a si mesma. 
Para isso, busca o refúgio mais óbvio possível: a proximidade com sua mãe, agora uma viúva que mora sozinha. Abandona Nova Iorque por uma cidadezinha qualquer em Minessota pelo verão, toma para si a missão de ministrar uma oficina de poesia para jovens adolescentes e arranja uma casa próxima da residência em que cresceu.
Siri Hustvedt cria um universo bastante interessante, embora o excesso de novos personagens em tão poucas páginas confunda um pouco o leitor no começo. Mia toma parte do clube de leitoras de sua mãe, onde conhece talvez a personagem mais interessante do livro, a alta e imponente Abigail, que por trás da faixada de professora aposentada de artes revela suas obras secretas: com o uso de vários materias, fazia bordados que escondiam bordados. Se a primeira camada era feita de cenas pacatas, a segunda continha cenas entre o nonsense e o erótico. Essas obras, seus “alumbramentos”, mantiveram-se segredo assim como os pormenores de sua vida sentimental. Sua ligação imediata com Mia, alguém sem tantos preconceitos e também uma apreciadora ávida de arte, é escrita de forma bastante sentimental e deixa clara a mensagem de que há um mundo particular por trás de cada mulher banal vivendo um drama banal. 
Outras relações significativas travadas são com o grupo de jovens estudantes, que logo fazem com que Mia reflita sobre sua própria adolescência, marcada por uma sensação de inadequação. Ao invés de simplesmente empatizar com Alice, a menina ostracizada, Mia reflete de verdade sobre a experiência daquelas meninas sem cair nos clichês. Há também Lola, a vizinha que casou-se cedo e enfrenta a batalha de criar seus dois filhos com um marido irritadiço e logo torna-se sua amiga.
Muita coisa acontece em O verão sem homens e, apesar do enredo principal – o drama entre Mia e Bóris – permancer em sua posição central, mantendo o resto em ordem, há a sensação de que o romance não dá conta de tudo que propõem, explorando mal o universo colorido que apresenta. Incomoda, principalmente, quando questões que são apresentadas como centrais no começo são abandonadas ao longo da narrativa para que o desfecho aconteça.
O romance conta também com alguns poemas e ilustrações de Mia. Os primeiros dialogam diretamente com as situações abordadas enquanto os segundos relacionam-se mais frouxamente com os acontecimentos. O objetivo de fazer deste um caderno de anotações de Mia em seu período de recuperação não é alcançado plenamente, no entanto, e em alguns momentos o leitor esquece-se mesmo deste recurso formal que acaba sendo um detalhe.
A tradução encontra obstáculos em certas expressões idiomáticas rapidamente reconhecidas por quem conhece o idioma original, em parte devido à dicção bastante atual do romance. Apesar disso, a leitura de O verão sem homens é fluída e bem-humorada, com sensibilidade acertada que compensa suas falhas e torna-o um chick lit com mais substância que a média. 

Nota: ♥♥♥

terça-feira, 7 de março de 2017

A montanha mágica, Thomas Mann

Autor: Thomas Mann
Tradutor: Herbet Caro
Revisão da Tradução e Posfácio: Paulo Astor Soethe
Edição: São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

Clássico fundamental tanto da literatura alemã como da literatura ocidental como um todo e exemplo perfeito de bildungsroman (romance de formação), A montanha mágica foi publicado em aguardada nova edição pela Companhia das Letras em 2016. O livro recebeu os cuidados merecidos, optando por manter a elogiada tradução do falecido tradutor Herbert Caro, mas recebeu uma revisão para atualizá-la e posfácio novo além, é claro, de novo projeto gráfico. Publicada pela primeira vez em 1924, a obra lança interessante luz sobre a sociedade europeia e seus conflitos ideológicos que culminaram na Primeira Guerra Mundial, ao mesmo tempo que oferece enriquecedor panorama para quem quer entender melhor o que constitui a identidade do continente até hoje. Sua fortuna crítica é extensa e de alta qualidade, inclusive entre teóricos brasileiros, uma vez que há uma curiosa ligação biográfica do autor com nosso país – sua mãe nasceu e viveu seus primeiros anos entre Angra dos Reis e Paraty, antes de ser enviada para Alemanha – a acrescentar ao caráter monumental da obra que extende-se, nesta edição, por 827 páginas e rendem infinitas análises. 
Uma questão, no entanto, parece ser consenso: A montanha mágica lida com a questão do tempo como fonte de desconcertante ambivalência à qual estamos sujeitos pela condição humana. 
Hans Castorp, nosso protagonista, é jovem engenheiro de origem nobre e modos burgueses. Orfão de pais, conhece a morte desde muito cedo e é criado pela família estendida, cuja figura do tio-avô desperta o tipo de respeito que somos incentivados a sentir pelas figuras patriarcais austéras. Castorp, como a própria narrativa coloca, é um sujeito comum, talvez até medíocre. Resolve visitar seu primo, Joachim, no sanatório para tuberculosos e aproveitar pare revigorar-se de uma persistente anemia. Seu plano inicial é passar apenas três semanas e partir para sua primeira experiência de campo como engenheiro naval, mas eles caem por terra quando a pequena anemia que pretendia tratar concomitantemente à visita ao primo evolui para um quadro pior – embora nunca diagnosticado efetivamente. 
O tempo no sanatório de Berghorf corre de forma diferente. Uma rotina rígida é respeitada pelos pacientes, que são alimentados com fartas refeições, fazem caminhadas diárias, registram a própria temperatura periodicamente e repousam ao céu aberto. Não há nada a fazer a não ser ocupar-se da própria saúde obsessivamente. A sociedade de Berghorf, por seu isolamento físico, acaba distanciando-se dos problemas da planície e de suas regras, além de ser constituída por elementos de diversos lugares. Berghorf é microcosmo da Europa, representada pelas mesas da sala de jantar: ingleses, alemães, os russos nobres e os russos ordinários e a peculiar figura de Ludovico Settembrini, intelectual italiano humanista que toma para si a função pedagógica de censurar os devaneios de Hans Castorp. Também ocorrem palestras para os enfermos e várias delas ocupam-se do perigo que o estímulo amoroso representa para quem sofre da tuberculose. 
Se Settembrini sutilmente vai moldando o modo de pensar do nosso herói que não é herói, é a presença de Clawdia Chauchaut, cuja presença desperta nele memórias de um colega de escola por quem Castorp nutriu sua primeira paixão (um interessante momento homoerótico na narrativa que salta aos olhos do leitor moderno). Ele nutre uma paixão por Clawdia mesmo ciente da diferença de classe entre eles e que acaba arrastando-o ainda mais para dentro do universo das relações do sanatório, esse mundo estranhamente autossuficiente dos enfermos.
O universo de Berghorf está longe de ser um lugar de recato, apesar de assim se apresentar ao olho mal-treinado dos visitantes graças aos esforços dos funcionários. Na verdade, os que ali residem mantém intensa sociedade entre si, estabelecendo amizades e laços amorosos que ignoram as dinâmicas da planície. A morte, que deveria rondar essas personagens, é tratada como assunto proibido: o médico incentiva seus pacientes a morrer sem escândalos, discretamente são removidos os corpos e logo os quartos são desinfetados para receber o próximo paciente – e sangue novo é sempre motivo de agitação para os pacientes confinados. A atividade profissional de Castorp é deixada de lado assim como o livro que ele traz sobre o assunto, e lá  ele aprende a dedicar-se ao que chama de “reinar”: longas reflexões filosóficas em que começa a ponderar mais profundamente a existência. O personagem de Settembrini é crucial nesse novo hábito e exerce sua influência ao mesmo tempo em que revela na mesma intensidade a beleza e também as limitações do pensamento humanista europeu.
  Thomas Mann explora brilhantemente as contradições entre o desejo pela democracia e o impulso imperialista bélico e o desdém por culturas diferentes que ainda se fazem muito presentes no velho continente, que fermentaram e fermentam ainda hoje os principais conflitos na região. Mais tarde, somos apresentados também a outra figura intelectual contraditória, o conservador Naphta. Ele abandona suas raízes judaicas para frequentar o seminário e tornar-se jesuíta; a perseguição ao povo judeu torna-o órfão de maneira brutal e influenciam bastante sua personalidade. Figura pessimista, Naphta entende o mundo pela via teológica que lhe permitiu superar a miséria e faz pouco da ciência, que entende como apenas mais uma crença. Suas opiniões são cínicas e sua figura desagradável, mas é por meio dele que vemos alguns dos diagnósticos mais acertados dos longos debates que A montanha mágica traz. Também pretende extender sua influência pedagógica sobre Hans Castorp em um conflito que, representando as forças opostas que tomam a Europa, recebe um desfecho trágico.
  A prosa de Thomas Mann é densa e seu feito mais impressionante está em, de fato, manipular a sensação da passagem do tempo. Assim como o primeiro dia no sanatório transcorre de forma mais impactante para Castorp, toma mais páginas do livro. A prosa acelera e é pontuada por diálogos curtos quando o protagonista encontra-se com a Sra Chauchaut, em especial no único encontro romântico entre os dois que brilhantemente acontece em ritmo totalmente diferente. Apesar disso, Mann domina a ironia e arranca mesmo sorrisos de seus leitores ao demonstrar o que há de patético no grupo alienado que povoa a Montanha e em quanto se levam a sério. O narrador é onisciente, usa ocasionalmente a primeira pessoa do plural e dedica-se abertamente à Hans Castorp, julgando-o duramente e com isso, estranhamente, tornando-o mais simpático ao leitor.
  A eventual e inevitável descida à planície mal é sentida para quem lê, assim como para o personagem acontece em um estado de transe. A montanha mágica evoca a ideia de que tempo e espaço são indivisíveis em seu favor: neste lugar, os personagens não precisam cumprir seus papéis sociais e até mesmo as normas de comportamento são afrouxadas. Lá, podemos acompanhar as reinações de Castorp, mas também a apatia que a intensa atividade intelectual como fim em si mesma (ao contrário de Settembrini, por exemplo, que possui um ideal pelo qual luta dentro de seus meios) desperta na juventude. Essa juventude egoísta, doente e pouco interessada na vida prática subitamente é lançada, em estado de torpor, no campo de batalha. O simples contraste evoca a crueldade da Guerra mais efetivamente do que a descrição minuciosa de seus horrores poderia conseguir. 
A subida para a montanha mágica é íngreme. O próprio autor recomendava aos excursionistas pelo menos duas leituras para que se consiga dar conta do denso conteúdo. A primeira viagem, por mais desafiadora que seja, já consegue ser recompensadora ao seu modo e o desfecho dessa obra - que pode espantar o leitor por sua erudição - demonstra claramente que seu autor domina o gênero de maneira fascinante para quem quer entender melhor o romance e, por consequência, uma vez que o gênero está profundamente ligado com o nacionalismo e o estado burguês  europeu, o espírito do continente como um todo.  

Nota: ♥♥♥♥♥


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Recomendação - Curta

A Mary, amiga de longa data que vocês podem encontrar falando sobre cinema aqui, escreveu e dirigiu seu primeiro curta, chamado Teodora. Disponibilizo aqui para que vocês possam assisti-lo e aproveito para parabenizá-la pelo excelente trabalho!



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Fascismo Eterno, Umberto Eco [tradução] [proibida a reprodução]

Este texto faz parte de um projeto pessoal que pretendo disponibilizar aqui ao longo deste ano. A ideia é, essencialmente, escolher um texto que tenha sido publicado recentemente em veículos que discutem Literatura como o New York Review of Books e o Paris Review e postar suas traduções. Espero conseguir manter certa periodicidade. 

Texto publicado no The New York Review of Books, originalmente publicado em 22 de junho de 1995. Tradução sem fins lucrativos. 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação, Haruki Murakami

Autor: Haruki Murakami
Tradutor: Eunice Suenaga
Edição: Rio de Janeiro: Objetiva, 2014

Haruki Murakami é autor contemporâneo japonês de bastante destaque no cenário internacional. Suas obras possuem bastante alcance, recebendo traduções em diversos idiomas e adaptações para o cinema. Seu estilo possui clara influência ocidental, em especial da literatura e música norte-americana, o que o torna mais acessível fora da Ásia. No Brasil, vários de seus títulos foram publicados pela Alfaguara e possuem considerável público. 
Isso se deve, em parte, às narrativas centradas na ação que Murakami constrói. Sua obra consegue entreter seu leitor com um ritmo acelerado, mas  sem ser demasiadamente superficial. O autor recorre muitas vezes à inserção de uma aura misteriosa em que o mundo físico e um outro mundo mágico – como o subterrâneo de 1Q84 – coexistem, construindo uma atmosfera intrigante. Também recorre frequentemente, como em Norwegian Wood, a outro mundo não visível: a investigação psicológica de personagens reféns de si mesmos. O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação pertence a essa segunda categoria.
Tsukuru Tazaki é o protagonista desta. Engenheiro, Tsukuru trabalha em uma companhia férrea construindo estações de trem, uma paixão de sua adolescência. É saudável, possui boa educação e situação financeira e, como diria Jane Austen, “deve estar procurando uma esposa”. Sara, uma mulher a quem é apresentado por um colega de trabalho, é seu mais novo interesse amoroso. Ela, no entanto, apresenta um obstáculo ao nosso protagonista: demanda que ele invista emocionalmente no relacionamento.
Para isso, Tsukuru precisa voltar ao seu passado e entender o trauma que marcou sua adolescência. Na época do colegial, ele foi parte de um grupo de cinco amigos próximos, cujos nomes coincidentemente eram de cores diferentes – Akamatsu é “pinheiro vermelho”, Ômi é “mar azul” e as meninas Shirane “raiz branca” e Kurono “campo preto”. Somente a ele cabe um nome desligado desse signficado, uma vez que o seu está relacionado com a ideia de construir. Ficou o apelido e a sina de Tsukuru, o incolor. 
A amizade dos cinco é intensa. Juntos, voluntariam-se em uma escola humilde da região. Quando terminam os estudos secundários, Tsukuru é o único que decide abandonar Nagoia por Tóquio. Um ano depois, recebe um telefonema de Azul dizendo para não procurá-los mais.
   Tsukuru é profundamente inseguro e essa rejeição é aceita por ele quase que sem reservas. Mergulha em uma profunda depressão da qual emergirá somente seis meses mais tarde; torna-se um homem mudado. 
É difícil apontar qual a principal falha deste romance: seu protagonista infantil, o péssimo trabalho de seu autor ao abordar a sexualidade de seus personagens ou as pontas soltas mal disfarçadas com um final aberto que pouco acrescenta ao livro. O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação  é uma realização fraca quando comparada com os outros romances do autor.
As personagens aqui simplesmente não convencem, meras promessas de algo que poderia ser melhor desenvolvido. Branca é, talvez, a personagem mais injustiçada. Sabemos que ela é dona de uma sensibilidade excepcional porque é artista e dá aula para crianças (o protagonista que passa a vida inteira remoendo uma única rejeição sem ter coragem de questioná-la  de fato, mas aparentemente não devemos pensar nele como alguém particularmente sensível porque é engenheiro ou qualquer justificativa que o valha). Sara, o interesse amoroso do protagonista, é mero receptáculo para a necessidade de motivação do personagem; a sua é somente um relacionamento estável. Representa, de maneira quase risível, um pólo oposto à estranha paixão adolescente de Tsukuru, que é incapaz de diferenciar as duas amigas – uma solução preguiçosa do autor para o fato de que, exceto por características físicas, pouco diferencia as personagens. 
Há ainda o amigo da Universidade de Tsukuru, Haida – hai é uma palavra tradicional japonesa para a cor cinza – cuja entrada e saída súbita na vida do personagem é constatada por nosso protagonista como algo que também precisa de resolução, mas abandonada no meio do caminho. Sua presença acrescenta ainda uma narrativa myse en abime também sem resolução que aborda frouxamente o tema da peregrinação.
O conceito de peregrinação está no centro do romance, mas nunca é discutido abertamente e poderia ser melhor aproveitado. Tsukuru é expulso de uma sociedade idealizada, unida por motivos altruístas, mas peregrina de fato muito pouco para quem trabalha com estações de trem – uma ironia bem fraca. Duas viagens concluem todo seu drama pessoal, somente uma realmente para longe – e que é abordada superficialmente, uma vez que segue a mesma estrutura dos episódios que tomam lugar em Nagoia e não acrescentam nada que não poderia ter acontecido no próprio Japão e nenhuma epifania particularmente enriquecedora, mas somente dá algumas respostas para o mistério central da narrativa.
Para não dizer que o autor não percebe o material que tem em mãos, temos diversos parágrafos explicando o significado mais profundo do interesse de Tsukuru por estações de trem, uma metáfora tão óbvia que ao ser esmiuçada apenas dilui seu poder.
As falhas de O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação possui são bastante óbvias e fazem com que a obra seja uma das mais fracas de um autor, no geral, capaz de produzir romances de melhor qualidade. É chocante  que Murakami não se envergonhe de permitir que um livro assinado por ele contenha a frase “Ele sentiu no pescoço dele o sorriso tranquilo dela, e seus seios estavam cheios de energia para continuar vivendo”, digna de um rol das piores citações da literatura recente. Resta torcer para que o autor se redima no futuro, retomando o potencial que exibiu em 1Q84. 


Nota: ♥♥

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Dois Irmãos, Milton Hatoum

Dois Irmãos, Milton Hatoum
Título: Dois Irmãos
Autor: Milton Hatoum
Edição: Companhia das Letras, 2007.


Milton Hatoum é autor brasileiro contemporâneo de impressionante carreira. Manaura de família de origem libanesa, seus romances  Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos e Cinzas do Norte todos foram premiados com o Jabuti de melhor romance. O potencial de Dois Irmãos em outras mídias, que é seu romance mais popular,  têm sido bastante explorado recentemente. Em 2015, a obra foi adaptada em HQ por dois dos principais nomes brasileiros na área, Fábio Moon e Gabriel Bá, e em 2017 ganhou adaptação no formato minisérie para a rede Globo de televisão.
O enredo acompanha a vida dos gêmeos Omar e Yaqub. De família síria, os meninos crescem adorados pela mãe e irmã mais velha e ressentidos pelo pai, que nunca desejou intrusos no seu intenso idílio amoroso com a esposa.  Nosso narrador mantém sua própria identidade em suspensa no ar a maior parte do romance – através das narrativas familiares que reorganiza para o leitor define, também, a si mesmo.  
A ideia de irmãos gêmeos possui um forte poder evocativo no imaginário coletivo ocidental por estar associada a outra ideia, muitas vezes fonte de horror, também explorada pela Literatura: o duplo. Inúmeras narrativas apoiam-se na imagem de personagens cujo destino está inevitavelmente ligado ao outro. Esse "outro" pode ser tanto complementar quanto o seu reverso, mas raramente é fonte de uma relação saudável. A sentença de um duplo “para vida”, que é a condição a qual os gêmeos são relegados por laços sanguíneos, reforça o ar trágico do qual Hatoum faz proveito ao narrar o fim da linhagem produzida por Zana e Halim.
Omar e Yaqub serem duas faces da mesma moeda não significa, no entanto, que um é bom e outro mau. Está nessa compreensão uma das chaves do romance, que explicam também o plano metafórico que Hatoum constrói. Ambos possuem falhas e elas são reflexos umas das outras. Em suas tentativas de diferenciar-se, tornam-se um completo.
    O romance começa com Yaqub retornando da Síria após uma longa temporada em uma pequena aldeia, sem linguagem adequada para expressar-se nem conhecimento das regras de etiqueta. Omar reina absoluto na casa e nas afeições da mãe. Instala-se o conflito: as diferentes formas como os irmãos encaram o fracasso e a rejeição, a impossibilidade de entendimento entre ambos, cujos temperamentos parecem fazer tudo possível para negar as semelhanças físicas. E assim segue o romance inteiro: a vitória de um, intencional ou não, implica na derrota do outro. 
Yaqub parte para São Paulo, onde encontra sucesso nos estudos universitários e, mais tarde, em uma carreira de engenheiro. Omar entrega-se à boêmia manauara, mergulhando cada vez mais fundo na vida noturna e nos lugares remotos da cidade. A tensão entre ambos é, também, uma materialização da tensão entre o Norte e o Sul do país: ambos são igualmente dados aos seus impulsos egoístas, apenas os exploram de maneiras diferentes – enquanto Yaqub lhes dá um verniz de sofisticação, Omar deleita-se com o que há de primitivo neles. Ainda neste panorama, temos a personagem Domingas. De origem pobre, fica órfã e é levada para o cuidado das freiras e, mais tarde, da família dos meninos que, apesar de não serem muito mais velhos que ela, exerce um ambíguo papel maternal em suas vidas. Representa outra faceta do Brasil: a que é explorada e relegada ao “quartinho dos fundos”, parte da família somente quando interessa aos que possuem maior poder.
Outro aspecto interessante explorado pelo autor é o núcleo familiar extremamente fechado, a ponto das relações serem todas contaminadas. A expressão máxima disso é, aqui, as inúmeras menções e mesmo a ocorrência direta de incesto. A obsessão de Zana pelos filhos, em especial Omar, e Rânia pelos irmãos é motivo até de alguns comentários, além da clara desconfiança do narrador – e aqui precisamos nos indagar se sua condição dentro do núcleo familiar não o faz particularmente malicioso na interpretação desses afetos. Halim claramente sente ciúmes de Zana. Essa obsessão leva os personagens a fechar-se e, eventualmente, acaba com sua linhagem.  
Se o clima novelesco ameaça o romance de Hatoum com as ações dramáticas que recheiam seu romance, a maneira com que o autor captura o uso da língua dá autenticidade ao seu romance, fazendo dele, ao mesmo tempo, uma saga familiar com contornos épicos e um relato desses que é passado de boca a boca. O uso do narrador em primeira pessoa, dá folêgo para o romance nos momentos em que há afrouxamento da tensão entre as personagens – sua condição na família e no romance é a mesma: fonte de uma tensão subjacente, por vezes esquecida.
   Dois irmãos consegue, portanto, agradar tanto o leitor mais casual quanto o mais exigente e é um romance interessante de nossa contemporaneidade. A prosa de Hatoum é fluída e sem floreios, mas também é dosada para que o leitor possa entrever possibilidades no que não é dito ou no que somente é insinuado de maneira rica. Suas críticas podem parecer sutis – o autor só abandona qualquer pretexto de sutileza quando trata do período da ditadura militar -  mas conseguem ser contundentes sem cair em um tom professoral. Hatoum consegue a difícil tarefa de produzir um romance denso sem ser hermético.

Nota:♥♥♥♥♥