terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Landline, Rainbow Rowell

Título: Landline
Autora: Rainbow Rowell
Edição: London: Orion Books, 2014.


Rainbow Rowell é autora norte-americana que ganhou reconhecimento por suas obras voltadas para jovens adultos – Fangirl e Eleanor & Parks. Apesar disso, Landiline, assim como seu romance de estréia Attachtments, tem como público alvo adultos.
No romance, a personagem principal é Georgie, uma escritora para seriados de televisão que recebe a chance pela qual sempre esperou: finalmente consegue que um produtor financie o piloto da série que sonha escrever desde os tempos de faculdade. O problema é que, para conseguir entregar os roteiros exigidos para fechar o negócio, terá que passar o recesso de natal trabalhando. Seu marido decide, mesmo assim, levar adiante os planos da família adiante e viaja com as duas filhas do casal para a casa de seus pais, enquanto Georgie fica para trás tentando se dedicar ao seu trabalho, mas perturbada pela possibilidade de seu casamento estar prestes a acabar.
O enredo sofre de um excesso de informação – os flashbacks; a conturbada relação platônica de Georgie e seu parceiro de escrita, Seth; os diferentes relacionamentos da protagonista com sua família e o drama com seu marido, o introspectivo Neal – e falha por não encontrar uma resolução real. As batalhas pessoais de Georgie para conseguir equilibrar vida pessoal e profissional,  sua história na carreira e o relacionamento platônico com Seth lembram bastante 30 Rock, sitcom americano escrito por Tina Fey que praticamente implora para ser uma das referências da personagem central, mas ao não ser mencionado dá a péssima impressão de que a autora prefere que seu leitor não perceba a nitída influência.
Além dos dramas pessoais, o romance ainda traz um elemento de fantasia: Georgie passa os dias do recesso na casa de sua mãe e lá usa o telefone residencial para telefonar para o residencial da família de Neal – que se recusa a atendê-la no celular. Porém, Georgie logo percebe que não está falando com o Neal do presente, mas sim com o Neal do passado, mais exatamente uma semana antes de pedi-la em casamento. Os dois dividem longas conversas sobre relacionamentos enquanto Georgie reavalia a vida dos dois juntos.
Como personagem, Georgie é bastante frustrante. Sua incapacidade de ter orgulho do próprio trabalho e a facilidade com que o enxerga somente como um problema quando é a única fonte de renda do casal, junto com o fato de que em nenhum momento ela parece perceber que um homem jamais se sentiria culpado por estar na posição em que ela está são irritantes e fazem com que Neal, que tinha tudo para ser um personagem que questiona estereótipos ao escolher ficar em casa com as filhas, torne-se somente um homem inseguro e incapaz de se comunicar de verdade. E, mesmo com o grande gesto dramático final, não há resolução para as questões que o livro aborda justamente por seu tratamento superficial do que poderia ser uma interessante reflexão sobre a dinâmica familiar nos dias de hoje.
O que faz com que, apesar de seus defeitos, Landline seja uma leitura prazerosa é a habilidade de Rainbow Rowell para escrever diálogos divertidos. Apesar disso, é impossível evitar, ao final da leitura, a sensação de que nada aconteceu de fato durante a narrativa e de que os personagens continuam como no começo.

Nota: 


domingo, 24 de agosto de 2014

The Secret History, Donna Tartt

Título: The Secret History
Autor: Donna Tartt
Edição: Penguin, Kindle Edition, 2011

           Donna Tartt é autora norte-americana e a recipiente do Pulitzer de 2014 por seu mais recente romance, The Goldfinch. Sua obra de estréia é The Secret History (em português, A história secreta, publicado pela Companhia das Letras) data de 1992 e causou forte impressão na crítica e no público.
            O famoso prólogo de Tartt funciona como um início in media res para o livro e, a partir do momento que sabemos o evento trágico que afetará o narrador, o calouro Richard Papen, resta descobrir o que leva a esse acontecimento e quais as consequências dele.
            Richard abandona a Califórnia, onde nasceu e foi criado por uma família relativamente humilde em que nunca se sentiu confortável, para estudar em Vermont. Abandona o plano de cursar medicina e tenta matricular-se em grego antigo, porém seu pedido de matrícula é negado. Descobre, por meio de seu professor de francês, que os alunos de grego fazem parte de um grupo curioso da faculdade organizado em torno do professor Julian. Ele aceita somente uma meia dúzia de estudantes que obrigatoriamente deverá cursar todas as disciplinas por ele ministradas. O resultado é uma experiência universitária isolada que afasta muitos alunos, porém a figura pitoresca do professor além do fascínio por seus jovens e misteriosos discípulos convencem Richard a insistir mais uma vez.
            Richard consegue, finalmente, sua admissão e passa a se enturmar com seus poucos colegas de classe. São eles Henry, um rapaz quieto e genial que domina uma porção de línguas; os belíssimos gêmeos Charles e Camilla; o jovem esportista Bunny e o extravagante Francis, cuja casa de campo torna-se palco de diversos finais de semana dos jovens. Todos agem como se fossem ricos – embora alguns sejam mais do que outros – e, exceto pelo novo aluno de Julian, conhecem-se há tempos. Richard, desejando impressionar os jovens que tanto o impressionam, inventa diversas mentiras para encobrir seu passado simples e consegue fingir também ser parte do universo dos amigos.
            A revelação feita no prológo é escolha perfeita para a atmosfera fortemente influenciada pelo pensamento grego que permeia a trama. A sensação de que as personagens caminham para a fatalidade ecoa a ideia  grega do destino como inescapável. A vida de Bunny é uma farsa, e ele mantém seu status graças aos amigos mais privilegiados do que ele; Henry é dono de uma mente calculista, fascinada pelas ideias “frias” dos clássicos que tanto aprecia ler; os gêmeos possuem uma relação marcada pela codependência e abuso muito mais complexa do que as aparências indicam; Francis aceita ser manipulado para manter a condição financeira oferecida por sua mãe, a quem despreza.
            Richard, por sua vez, é um narrador que desperta a desconfiança do autor. Seus relacionamentos são marcados por uma incapacidade de envolvimento real e sua obsessão por aparentar ser alguém erudito e sofisticado a qualquer custo o tornam indigesto para o leitor. Em certos momentos, revela pensamentos que o tornam abertamente repulsivo – especialmente no que tange seu desejo por Camilla e sua relação com a estudante californiana de artes cênicas, Judy. Aos poucos, sua participação nos eventos finais torna-se cada vez mais compreensíveis – e sua dificuldade para compreender os impulsos de Henry também.
            Tartt, no entanto, consegue centrar sua narrativa em um personagem desagradável sem prejudicar o fascínio que ela exerce no leitor – pelo contrário. A obsessão dos jovens com rituais dionísicos e com a ideia introduzida por Julian de que o que é belo causa também terror fazem parte de toda a narrativa graças à sua prosa elegante. Esse bom gosto ao narrar um crime reflete a possibilidade constantemente explorada pela obra da convivência entre o refinamento e a violência.
            É particularmente revigorante pensar que o romance é centrado em torno da faixa etária mais cobiçada pelo mercado editorial nas últimas duas décadas – os jovens adultos – porém não é uma obra feita com o intuito de agradar especificamente a esse público, o que a maioria dos autores procura fazer subestimando seus leitores. The Secret History recusa-se a acelerar seu ritmo, intercalando momentos de ação com momentos em que seus personagens preocupam-se com coisas tão prosaicas quanto a lição de casa a ser entregue. Os jovens que aparecem aqui são seres totalmente desenvolvidos: capazes, inteligentes, conscientes de certo e errado e ao mesmo tempo fascinados o suficiente com o prazer do discurso – como bons discípulos dos gregos antigos – para caminhar a linha tênue entre os dois enquanto discutem o que é heroísmo ou o desejo de imortalidade. Ao mesmo tempo, estão isolados do universo adulto de fato, e é por isso que sucumbem perante as consequências de suas ações. A leitura é uma caminhada trágica, porém bela. 

Nota: 

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Nu, de botas, Antonio Prata

Título: Nu, de botas
Autor: Antonio Prata
Edição: Companhia das Letras, São Paulo: 2013. 1ª edição.

            Antonio Prata é escritor paulista. Versátil, trabalha com roteiros para cinema e televisão além de uma coluna na Folha de São Paulo. Já publicou uma coletânea de crônicas chamada Meio intelectual, meio de esquerda cujo título é o mesmo de um de seus textos mais. Em Nu, de botas, Prata apresenta reminiscências de sua infância na São Paulo dos anos 80 de forma bem humorada.
            Com mais jeito de livro de memórias do que qualquer outra coisa, a obra é catalogada como uma coleção de crônicas e, embora todos os textos funcionem individualmente, a leitura completa obedecendo a ordem apresentada na edição é definitivamente a mais proveitosa. Alguns personagens e episódios são recorrências discretas, tornando-se espécie de running gags - piadas cujo efeito cômico torna-se cumulativo com sua repetição constante, mais comuns à linguagem cinematográfica e da televisão do que à literária.
            As crônicas são leves, engraçadas, abordadas com o intuito de  explorar o ponto de vista do Antonio criança (ficcionalizado, é claro). Tratam de pequenos eventos marcantes – as brincadeiras das crianças do bairro, o divórcio dos pais, a alfabetização, os animais de estimação, a chegada da irmã – conseguindo um equilíbrio impressionante entre a consciência do exagero infantil e o entendimento que ele é fruto do estranhamento do mundo que a infância proporciona.
            Merecem destaque “Ca ce ci co çu”, brilhante reflexão linguística sobre o poder subversivo de algumas palavras na visão infantil que cria uma divertida quebra de expectativa para o protagonista e “Banhos”, um hilário episódio de descoberta assombrosa sobre a sexualidade.
            Antonio Prata consegue segurar o tom leve de sua obra e raramente derrapa para um humor mais crasso – mesmo navegando no universo infantil onde o humor escatológico, por exemplo, é tão recorrente. O ponto baixo é, sem dúvidas, “Patos”, que tenta trazer humor para um momento que revela um pouco mais do que a simples ignorância infantil que seu autor coloca em primeiro plano.
            Apesar disso, é inegável a competência de Antonio Prata e suas reminiscências sobre a infância são particularmente agradáveis para aqueles que viveram os anos 80.

Nota:

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Book Haul - Junho '14


     Junho é meu mês favorito do ano e esse ano foi o mês mais descontrolado no quesito aquisição de livros também. Quando parei para contabilizar o estrago decidi ficar pelo menos um mês sem comprar nada e estou quase alcançando a meta (só vou abrir uma pequena exceção pro livro novo do Milan Kundera, mas é só, JURO). E vários dos livros foram presentes porque junho é o mês do meu aniversário :)




 




     Bom, decidi não falar de livro por livro porque acho que ninguém teria paciência, né? Vários são das promoções que a Companhia das Letras e a Editora 34 fizeram esse mês e alguns outros são aproveitando o desconto para aniversariante da Cosac Naify. E uma boa quantidade também são livros que ganhei de presente :) Como vocês podem ver, junho foi um mês excelente para minha estante.

     É isso, pessoal, até mais e boas leituras!

segunda-feira, 21 de julho de 2014

A fantástica vida breve de Oscar Wao, Junot Díaz

Título: A fantástica vida breve de Oscar Wao
Autor: Junot Díaz
Tradutor: Flávia Anderson
Edição: São Paulo: Record, 2009. 1ª edição.

         A fantástica vida breve de Oscar Wao é o primeiro romance de Junot Diaz – cuja estréia literária foi  o livro de contos Afogado – e pelo qual o autor recebeu o prêmio Pulitzer em 2008. De origem dominicana, Junot Díaz imigrou ainda jovem para os Estados Unidos e hoje é professor do famoso MIT (Massachussets Institute of Technology).
            Apesar de Oscar ser o personagem central e acompanharmos, como o título já indica, sua breve vida do ínicio ao fim, também são explorados os outros membros mais importantes de sua família – a mãe, a irmã Lola e sua avó, La Inca, que mora na República Dominicana em uma narrativa que divide-se em duas partes.
            Oscar é apresentado no primeiro capítulo: uma criança que conforme se desenvolve torna-se mais deslocado no mundo. Criado em uma comunidade de imigrantes, ele sofre por não conseguir se identificar com o esterétipo do latino. Gordo, nerd, solitário, tímido e terrivelmente romântico, Oscar tropeça pela vida e acaba encontrando uma paixão. A moça é colega de sala do cursinho onde Oscar estuda para sua segunda tentativa no exame de ensino médio americano, o SAT. A primeira desilusão amorosa alimenta sua vontade de encontrar na escrita um refúgio.
O segundo capítulo apresenta uma oscilação de narrador – ora usa-se a primeira pessoa, ora a terceira – o que, segundo o autor, é indicação de que o narrador estabelecido ao longo do livro, o dominicano Yunior, amigo de Lola e mais tarde Oscar, é quem de fato narra simulando o ponto de vista de sua amiga e ex-namorada. Lola vive em conflito constante com sua mãe, uma mulher antiquada que abusa fisica e psicologicamente da menina. Desesperada, decide fugir de casa para morar com o namorado, mas logo é resgatada pela mãe e mandada para a República Dominicana, onde mora com La Inca por uns tempos.
Temos, a seguir, um capítulo dedicado às histórias de origem de Belícia, mãe de Oscar e Lola. É revelado um passado de abusos e abandonos, até que a menina é resgatada por La Inca, uma parente distante que, incapaz de ter filhos, resolve procurar todos os parentes ainda vivos em meio a destruição da sociedade dominicana causada pela ditadura militar. Belícia é jovem impetuosa e, após uma desilusão amorosa durante a idade escolar, envolve-se com um gangster. Recusa-se a aceitar que não há destino para os dois e acaba engravidando somente para mais tarde descobrir que ele é casado com a irmã do ditador Trujillo. É dada a ordem para execução silenciosa de Beli. Milagrosamente, consegue sair com vida do canavial onde foi surrada e após recuperar-se, vai para os Estados Unidos onde constrói para si uma vida simples e marcada pelo trabalho pesado.
            O quarto descortina de vez o narrador que até então comentava a narrativa sem colocar-se como personagem. Ele é amigo de longa data de Lola, decide ser colega de quarto de Oscar para agradá-la. Atlético e mulherengo, Yunior decide “reformar” Oscar, mas acaba desistindo da missão e abandonando aos poucos a amizade com o irreparável nerd – apesar de não admitir abertamente, Yunior compartilha, embora com menor intensidade, os intesesses de Oscar e preocupa-se com o rapaz.
            Com os personagens centrais estabelecidos, acompanhamos as desventuras de Oscar até sermos apresentadas a que acaba por ser a final – sua paixão por uma prostituta amante de um dos generais da polícia dominicana, o que o coloca em perigo semelhante ao que sua mãe enfrentou anos atrás.
            A história da República Dominicana é presença forte em A fantástica vida breve de Oscar Wao, revelada seja pela narrativa, que demonstra a destruição do país e as cicatrizes deixadas de geração para geração, seja pelas surpreendentemente bem humoradas notas de roda pé escritas ainda no estilo do narrador e que comparam frequentemente Trujillo, o ditador, aos grandes vilões da cultura nerd – em especial, são feitas muitas referências à obra de Tolkien. Em ritmo acelerado e com uma escrita envolvente, Diaz discute os horrores das ditaduras financiadas pelos americanos que fizeram parte da história de vários países latino-americanos, a experiência da imigração e a identidade dominicana. O romance capta brilhantemente a força que move seus personagens em situações impossíveis – o instinto de sobrevivência da família de Oscar (e de todos os imigrantes), estranhamente envigorado por um impulso autodestrutivo.
Lola, mais próxima de La Inca do que de sua mãe, parece ser  única disposta a quebrar o ciclo (ou, como os dominicanos diriam, o fukú) da família e o desfecho indica alguma esperança de que finalmente consiga por meio da educação que sua mãe, personagem fascinante em sua complexidade, a garantiu e que agora lhe permite criar sua filha, Ísis, de forma mais consciente. 

Nota:

sábado, 12 de julho de 2014

Oranges are not the only fruit, Jeanette Winterson

Título: Oranges Are Not The Only Fruit
Autora: Jeanette Winterson
Edição: Grove Press, 1997.

        Jeanette Winterson é autora britânica conhecida principalmente pelo romance Oranges are not the only fruit. A obra foi adaptada para a televisão pela BBC e recebeu bastante destaque, além de arrebatar um BAFTA. A autora, por sua vez, também foi reconhecida por diversos prêmios e pertence a Order of British Empire por suas contribuições literárias ao país.
Com fortes tendências autobiográficas, Oranges are not the only fruit acompanha a vida de sua protagonista, Jeanette, da infância até a adolescência. Filha adotiva de um casal formado por uma cristã fervorosa e fundamentalista profundamente envolvida com a comunidade evangélica de sua cidade e um pai ausente, desde criança faz parte da congregação e é totalmente controlada por sua mãe, que também a educa em casa até os sete anos, quando recebe intimação para matriculá-la na escola.
A influência materna ainda prevalece e Jeanette sente-se deslocada dentro do ambiente escolar onde seu extenso conhecimento biblíco causa estranhamento e receio de colegas e professores. A igreja ainda é o lugar em que se sente em casa e, obedecendo aos desejos da mãe, estuda para tornar-se uma jovem missionária cristã. Apesar de sua lealdade, com a chegada da adolescência Jeanette vai percebendo que discorda de alguns pontos da doutrina que recebe, além de não simpatizar com o pastor famoso que sua congregação recebe. Percebe, também, que para os outros seu universo é estranho e o relacionamento com sua rígida mãe torna-se progressivamente mais difícil.
            Certo dia Jeanette conhece uma jovem na cidade e sente-se imediatamente fascinada por ela. A amizade entre as duas é imediata e Melanie passa a frequentar a igreja também. O relacionamento amoroso entre as duas lhes parece uma progressão natural, embora saibam que devem manter tudo em segredo. Quando descobertas, as jovens separam-se e Jeanette recebe traumático tratamento de sua família e comunidade, incluindo uma sessão de exorcismo em que é presa em um cômodo por trinta e seis horas sem comida. Jeanette finge arrepender-se e, com Melanie longe, dedica-se intensamente ao trabalho na Igreja – uma vez que sua habilidade linguística faz com que colha bons resultados, além de permitir que se sinta segura no ambiente predominante feminino em que cresceu.
Agora mais velha e longe da escola, com a igreja como sua principal obrigação, Jeanette sente-se satisfeita. Começa novo relacionamento com uma recém-convertida, Katy, e dessa vez procura manter o segredo com maior cuidado. No entanto, é descoberta e a congregação, incitada pelo pastor, decide que o problema é o proeminente papel exercido pelas mulheres da comunidade e que a atuação feminina deve ser limitada. Inconformada, finalmente decide abandonar sua casa e desligar-se da igreja. Arranja um emprego e começa a economizar para ir para Londres, lugar que idealiza como uma nova possibilidade.
            Narrado em primeira pessoa, o livro explora o impressionante impacto dos mitos bíblicos na mente jovem de Jeanette. Sua imaginação é toda ditada pelas estruturas narrativas e personagens que povoam essses textos que estuda com tanto afinco desde a infância. Os capítulos são nomeados segundo livros da bíblia que dialogam, na maioria das vezes pelo contraste, com o momento pelo qual a personagem central passa. O quinto capítulo, que ocupa posição central no livro, rompe de forma interessante com a narrativa estabelecida e apresenta um narrador – que não é a Jeanette-personagem – discutindo os conceitos de fato e ficção e como a história do passado individual de cada um é produto de ambos: não só dos fatos, mas também como eles foram por nós interpretados e pela forma que construímos nossas narrativas.
            Além do trabalho formal extremamente bem executado e reflexivo, a prosa de Winterson acompanha bem o desenvolvimento de sua personagem, dosando a influência do discurso religioso conforme o estado de sua heroína. Uma das principais características de Jeanette é sua eloquência, ferramenta usada tanto para o serviço da igreja quanto, mais tarde, para seu proveito próprio.
            Oranges are not the only fruit explora competentemente temas profundos em um número surpreendentemente pequeno de páginas: a religião, o papel feminino na sociedade, a morte, o preconceito sofrido pela comunidade LGBT e a própria natureza das histórias são abordadas de forma interessante e que revelam intenso cuidado da autora, resultando em uma obra executada brilhantemente.

Nota: ♥♥♥♥

segunda-feira, 30 de junho de 2014

A mulher calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia, Janet Malcolm

Título: A mulher calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia
Autora: Janet Malcolm
Tradutor: Sérgio Flaksman
Edição: São Paulo: Companha das Letras - Companhia de Bolso, 2012.

       Sylvia Plath foi uma autora americana de poesia e prosa famosa por seu estilo intimista, atmosférico e  por seu lirismo rico. O tom confessional e os detalhes autobiográficos que Plath inseria em sua obra tornaram-na, postumamente, objeto de intenso escrutínio. Detalhes de sua vida com seu marido, o poeta laureado Ted Hughes, e sua batalha desde a infância com a depressão fomentaram o mito de sua morte - um suicídio explorado em detalhes não só pela mídia, mas também dentro do meio acadêmico. A publicação de seus diários e as omissões feitas por Hughes, que além de editá-los, não escondeu ter destruído alguns dos cadernos mantidos por sua esposa só alimentaram a curiosidade pública sobre Plath.
            Janet Malcolm propõe com seu livro um estudo focado não em Sylvia Plath, mas sim nas narrativas que a envolvem e sua jornada tentando decrifrá-las. Para tanto precisa da aprovação dos Hughes. Ted e sua irmã, Olwyn, angariaram ao lidar com estudiosos que desejavam revisitar os espólios literários de Plath uma péssima reputação. Malcolm é compreensiva e busca estabelecer uma visão neutra, refletida em sua escrita que evita trazer suas próprias impressões. Apesar disso, é recebida com desconfiança.
 Ao mesmo tempo, a questão da biografia enquanto gênero e suas limitações – afinal, tudo que Janet Malcolm pode nos trazer em sua tentativa de imparcialidade ainda é marcado por suas impressões pessoais – surge como uma das principais discussões propostas pelo livro. Sylvia Plath é, de fato, exemplo perfeito da impossibilidade de impedir que animosidades despertadas por sua figura influenciem os inescapáveis julgamentos dos quais o biógrafo não pode escapar.
A autora tem consciência disso, o que a leva a admitir simpatizar com Ted Hughes, mesmo consciente de que o poeta mostra-se na mesma medida esquivo quando possível e solícito quando vantajoso, uma combinação frustrante tanto para o leitor quanto para a Malcolm.
A pesquisa de Janet Malcolm é sólida e nos apresenta seus encontros com as principais figuras da vida de Plath de forma interessante. Mesmo em seus esforços para compreender os Hughes, a autora não consegue disfarçar que encontra em seu caminho diversas forças antagônicas, a começar por Olwyn. Diante de tanta oposição, não parece estranho que a resposta de alguns estudiosos seja a adoração exagerada de Plath.
A questão do gênio poético de Plath é, talvez, o ponto mais interessante da biografia. Sua obra poética é  complexa e rica o suficiente para clamar independência da figura de sua autora. Porém, parece  frustrantemente impossível para os leitores,  acadêmicos e mesmo para Hughes enquanto poeta e editor escaparem dessa armadilha. A academia muito discutiu o silenciamento da voz poética de Plath que fez parte das tentativas de Ted de manter sua vida privada longe do alcance de estudiosos. Janet Malcolm racionaliza os motivos por trás disso e deixa para seu leitor decidir se preservar os vivos, em especial os dois filhos do casal, é um motivo razoável para justificar as escolhas, por vezes inconsistentes, dos Hughes.
Não há duvidas de que questões interessantes são levantadas e episódios relevantes descritos com tato, porém o livro atenta mais aos irmãos Hughes e sua relação com os biógrafos de Plath do que para a própria poeta.  O desprezo dos Hughes pelas leitoras de Plath faz com que o leitor já intua certa necessidade de equilíbrio que acaba faltando na obra. O retrato que os Hughes desejam pintar fica claro: uma mulher geniosa, atormentada por seus problemas mentais que tornavam difícil a convivência. Ao leitor, cabe pensar e decidir por si so: será que buscar Ted, por mais que seja possível compreender sua posição, é mesmo o melhor caminho para entender sua esposa? O mesmo Hughes que parece incapaz de entender e diferenciar a voz poética de sua esposa, rejeitando-a? Será que o ressentimento pelos poemas de Plath que sobrevivem com mais força terem sido produzidos durante o período em que Ted abandonou sua família o permite enxergar a questão com clareza?
Janet Malcolm pouco investiga  sobre a vida de Sylvia antes do casamento e da mudança para a Inglaterra e peca por não lhe dar mais autonomia em sua própria narrativa. Plath é a capa do livro, mas o recheio é a questão – brilhantemente abordada – da escrita de não-ficção e seus limites.
            
Nota: ♥♥♥

O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald

Título: O Grande Gatsby
Autor: F. Scott Fitzgerald
Tradutor: Vanessa Barbara
Edição: São Paulo: Penguin Classics - Companhia das Letras, 2011.

       Hemingway, de quem F. Scott Fitzgerald era amigo pessoal, popularizou o termo “geração perdida” criado por Gertrude Stein para descrever os jovens adultos que alcançaram a maioridade durante a Primeira Guerra Mundial e viveram os roaring twenties (em tradução livre, vigorosos anos 20). Esta geração foi definida, principalmente, pelo desejo de romper com as tradições. Em seu romance mais famoso, O Grande Gatsby, Fitzgerald debruça-se sobre uma das ideias que inspiravam, atormentavam e fascinavam sua geração: o sonho americano.
            O Grande Gatsby é um romance narrado por Nick Carraway, jovem veterano da guerra que acaba de se mudar para uma nova vizinhança em Nova Iorque graças à uma oportunidade de trabalho. Assim que se estabelece, Nick retoma contato com sua prima, Daisy, e o marido dela, Tom Buchanan. Nessas visitas conhece também Jordan Baker, proeminente tenista com quem começa um relacionamento.
            Nick logo descobre que a área em que estabeleceu residência é bem conhecida na cidade graças às festas que seu vizinho, Jay Gatsby, dá. Dono de uma impressionante mansão, Gatsby periodicamente organiza celebrações impressionantes em seu requinte e ostentação, apesar de não ser um participante entusiástico delas. Observa-as de fora, o que só alimenta ainda mais a curiosidade a respeito de sua figura misteriosa. Nick  recebe um convite para uma das festas e lá reencontra Jordan e descobre que seu vizinho e Daisy foram apaixonados no passado.
            São expostos, então, os relacionamentos entre as personagens. Gatsby aproxima-se de Nick e consegue finalmente uma entrada para o círculo social de Daisy. Apesar de possuir dinheiro, Gatsby mantem-se um forasteiro ao universo do qual deseja fazer parte. Conforme estabelece com Nick uma relação de amizade, é revelado como Gatsby conseguiu ascender socialmente e porque, afinal, preocupa-se tanto com suas festas. Seu longo diálogo é marcado pelo jeito caricato de falar e sua história de vida e sonhos contrastam com a superficialidade afetada dos outros personagens.
            O Grande Gatsby é comentário ácido sobre relações de classes. Aos personagens de berço de ouro resta uma covardia imensa de sair do conforto, mesmo quando esse conforto não traz felicidade concreta. A filha de Daisy e Tom, praticamente ignorada pelos pais, traz a promessa de que a alienação que permite que essas pessoas mantenham-se onde estão deverá continuar a existir. Por outro lado, Gatsby mostra que não há redenção para quem luta pela ascensão social a qualquer custo, pois o dinheiro traz também a corrupção do espírito jovem que acaba tornando-se inescrupuloso.
Se o personagem de Nick é estranhamente otimista para alguém que viu a Guerra – mas talvez assim tenham sido os jovens de classe média de sua geração – quando percebe a dura realidade social por meio do relacionamento com seus amigos, e em especial com Gatsby, começa a ter uma visão mais pessimista do mundo. O sucesso deixa de parecer uma equação simples em que esforço e inteligência resultam em felicidade.
A prosa de Fitzgerald é bem calculada e sabe ser pomposa na medida em que sua narrativa de aparência versus realidade pede, evitando exageros despropositados e encontrando um de seus maiores trunfos na construção de vozes convincentes para seus diferentes personagens. O enredo intercala momentos mais calmos e reflexivos com momentos de ação intensa, mantendo um ritmo que prende o leitor e, junto com o tema principal, explicam facilmente a longevidade do romance.
            
Nota: ♥♥♥♥

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Wide Sargasso Sea, Jean Rhys

Título: Wide Sargasso Sea
Autor: Jean Rhys
Edição: Penguin Books, 2000.

              Wide Sargasso Sea foi publicado pela primeira vez em 1939 por Jean Rhys. A obra foi o resultado de anos de trabalho e conseguiu boa recepção de público e crítica. O romance serve como prólogo para a obra Jane Eyre, clássico da autora britânica Charlotte Brontë. Wide Sargasso Sea funciona também independentemente, porém o cuidado da autora para que a sequência de eventos de uma obra possa realmente dar origem à outra, além do fato de se debruçar sobre as origens de uma das personagens tipo mais interessantes da Literatura, conhecida como the mad woman in the attic – em uma tradução livre, a mulher louca em um porão – permitindo-lhe ter voz dentro da narrativa fazem com que o romance de Jean Rhys só se beneficie pela leitura prévia do clássico de Brontë.
            O enredo conta a história de Antoinette desde sua infância nas fazendas de sua família situada na Jamaica. Após abolição da escravidão, os Cosway enfrentam uma situação precária que só não é crítica graças aos funcionários que se recusam a abandonar a fazenda mesmo com a possibilidade de liberdade.  A família encontra-se em péssimas condições financeiras, em especial após a morte do patriarca causada pela excessos com álcool.
            A mãe de Antoinette não consegue cuidar sozinha da família – que conta também com Pierre, um menino de saúde extremamente frágil – pois além de não possuir meios sequer para cuidar de si mesma, é ignorada pela elite branca da cidade. Os locais, por sua vez, também hostilizam os Cosway. A infância de Antoinette é marcada pela solidão e sensação de rejeição.
            A vida dos Cosway começa a mudar quando Anette conhece Sr. Mason, homem rico que se encanta por ela e a pede em casamento. A vida na fazenda passa a ser mais confortável e um breve período de paz acontece. Apesar disso, Sr. Mason é uma figura opressiva que se recusa a ouvir opiniões dos outros. As tensões na região começam a crescer e a população negra torna-se progressivamente mais agressiva em relação aos brancos, porém Mason ignora os perdidos da mulher e decide ficar.
            A situação torna-se insustentável quando as promessas de violência tornam-se realidade. A propriedade em que Antoinette cresceu é incendiada e a família escapa por um triz – porém, não sem consequências. Pierre não sobrevive, Anette perde o controle e enlouquece e a pequena Antoinette pede para ficar na Jamaica, em um internato, enquanto Mason decide finalmente partir para Inglaterra.
            Lá Antoinette passa a adolescência. O ambiente austero e rígido torna-se, pouco a pouco, um lugar de segurança para a menina, em especial pela possibilidade de isolamento que traz. Seu padrasto só exige seu retorno quando a moça alcança a idade de casamento.
            Aos dezessete anos, depois de uma vida marcada por eventos traumáticos e isolamento quase total, Antoinette hesita. Seu casamento é arranjado por interesses financeiros de ambas as partes e a enche de terror, mas poucas são as possibilidades para uma moça em sua situação e só lhe resta aceitar.
            O relacionamento com seu marido é marcado, novamente, pela sensação de rejeição. O jovem inglês estranha a região, a casa, os funcionários... e acaba, por fim, também alienando sua esposa. Antoinette fica perdida, desejando pelos primeiros dias de casamento em que para seu marido bastava-lhe sua beleza. A jovem começa a ressentir, em especial, a insistência de seu esposo de chamá-la de Bertha, nome dado sem explicações.
            Após uma discussão agressiva, Antoinette é levada para a Inglaterra, onde passa a ser tratada como louca e isolada totalmente. Aos poucos, a razão começa a escapar-lhe, porém o desejo de fuga mantém-se firme, culminando no incêndio da mansão de Rochester que acontece em Jane Eyre.
            O período histórico e cenário do romance amplificam a sensação inerente de Antoinette de não pertencer a nada. Vista como uma estranha tanto para as pessoas da região quanto para os britânicos, abandonada desde pequena pelos pais e uma estranha para o próprio marido, a jovem é predestinada a falhar em comunicar seus desejos – Antoinette quer, mas não consegue, demandar amor e compreensão das pessoas com quem convive – o que resulta na loucura. A infância, a estrutura social, a instituição da Igreja e do casamento silenciam cada vez mais a jovem.
            Como Antoinette é também a principal narradora, as consequências de seu isolamento são refletidas pelo seu recontar dos fatos que vai se tornando progressivamente mais turvo conforme a narrativa avança e seu isolamento se intensifica. Também são narradores Rochester, que oferece a visão do estrangeiro da região, seus costumes, hábitos e mesmo modo de falar e, por fim, Grace Poole,  empregada responsável por cuidar de Antoinette na Inglaterra.
            Wide Sargasso Sea parte de uma proposta que oferece mais fracassos do que sucessos à Literatura – imaginar o passado de um personagem já inventado – porém é bem sucedido graças ao tom acertado e escolhas interessantes de sua autora. A atmosfera opressora contrasta perfeitamente com as ensolaradas e abertas paisagens jamaicanas, culminando na ida para a sombria Londres. Profunda reflexão sobre a condição feminina na sociedade e as questões raciais e de classe pós-colonialistas, é um romance que vale a si mesmo e, acertadamente, foge à superficialidade que a trama poderia ganhar em mãos menos talentosas.

Nota: ♥♥♥♥


segunda-feira, 5 de maio de 2014

O Céu dos Suicidas, Ricardo Lísias

Título: O Céu dos Suicidas
Autor: Ricardo Lísias
Edição: Rio de Janeiro: Objetiva (Alfaguara), 2013.



          Ricardo Lísias é autor brasileiro, professor, tradutor e colaborador ocasional da Revista Piauí. Seus dois romances mais recentes, O Céu dos Suicidas e Divórcio ganharam considerável atenção da crítica e deixaram em destaque o nome do autor.
            O Céu dos Suicidas tem como personagem-narrador Ricardo – e muita especulação esse factoide despertou. Especulação inútil, diga-se de passagem. O aspecto autobiográfico é interessante, mas é um beco sem saída: não apresenta respostas. É, no entanto, compreensível que o leitor fique interessado por essa questão, uma vez que ela é menos desconcertante do que o verdadeiro beco sem saída que o Ricardo personagem encontra: como lidar com o suicídio em uma sociedade de valores judaico-cristãos.
            Ricardo abriga temporariamente André, seu amigo dos tempos de faculdade, em sua casa. André sofre com problemas psicológicos desde que ambos se conheceram pela primeira vez. Seu comportamento acaba enfurecendo Ricardo – que tenta ser paciente mas, como vemos ao longo do romance, tende a expressar seus sentimentos por meio da raiva – que expulsa seu amigo. Alguns dias depois, Ricardo fica sabendo que André se suicidou. Ricardo é chamado para prestar depoimentos por ter sido a última pessoa a ver o amigo antes de sua morte.
            O protagonista é colecionador profissional e obcecado com informações. André torna-se mais uma de suas obsessões e, ao longo do livro, vemos Ricardo catalogar mentalmente informações e memórias sobre o amigo e sobre si mesmo conforme atravessa o período de luto. A dificuldade de aceitar a condenação do suicídio por parte dos religiosos atormenta-o profundamente. Agressivo e autodestrutivo, Ricardo distancia-se da família e age de forma impulsiva até conseguir encontrar algum tipo de resolução para a inquietude deixada pela morte de André.
            O céu dos suicidas é uma leitura acertadamente tensa e desconfortável. A prosa econômica de Lísias é organizada de forma a refletir os processos mentais de seu narrador que precisa perder o controle para conseguir reconquistá-lo e constrói um retrato vivaz de como funciona uma mente obsessiva. O autor tem uma voz própria que conduz a narrativa com precisão e investe em uma linguagem clara e densa adequada às reflexões profundas que propõe.

  Nota: ♥♥♥♥

domingo, 4 de maio de 2014

Fahrenheit 451, Ray Bradbury



Título: Fahrenheit 451 
Autor: Ray Bradbury
Tradutor: Cid Knipel
Edição: São Paulo: Globo, 2009.


            Ray Bradbury é autor americano de romances de fantasia, horror e ficção científica. Suas obras receberam adaptações para diversas plataformas, entre elas o cinema e o teatro. Bradbury é famoso também por ter sido engajado defensor das bibliotecas públicas. Sem dúvidas é a paixão pelos livros a força motriz do enredo de Fahrenheit 451.
            O romance trata de um futuro distópico em que livros são proibidos. Nesse futuro, a função dos bombeiros é atender denúncias e queimar qualquer volume literário que tenha escapado. É encorajado, no entanto, que os cidadãos acompanhem programas aprovados e desenvolvidos pelo governo em telas imensas que permitem até mesmo a interação do espectador com os personagens e apresentadores. É assombroso que um livro publicado em 1953 consiga prever a obsessão com as telas e o consumo constante de informação – na maior parte do tempo inútil – das massas.
O livro é narrado em terceira pessoa com foco em Montag, um bombeiro que vive uma vida pacata até o dia em que, retornando do trabalho, é interpelado por sua jovem vizinha. Clarisse é, para os padrões de Montag, estranha e perigosa por ter o hábito de observar as coisas e fazer perguntas. Suas breves conversas com a jovem antes do sumiço dela – mais uma vítima da perseguição política – despertam algo que, mais tarde descobrimos, já não estava tão adormecido assim no protagonista.
Montag começa a se sentir insatisfeito com sua vida. Podemos perceber isso principalmente em seus conflitos com sua mulher, Mildred. Sua esposa é cidadã perfeita e recusa-se a discutir com Montag suas ansiedades e questionamentos. Não devemos, no entanto, assumir que ela não os tem: sua busca por alívio e alienação indicam justamente o contrário: existe uma sensação de insatisfação que permeia todo o livro, embora a maioria dos personagens não saiba articulá-la ou prefira ignorá-la por medo de represálias.
O chefe de Montag percebe as alterações em seu comportamento e decide conversar com o bombeiro, expondo o ponto de vista do governo sobre a necessidade de banir livros. A leitura, explica, não traz felicidade – pelo contrário, só faz as pessoas angustiarem-se mais perante o mundo. Além disso, os níveis de conhecimentos alcançados pelas pessoas não são sempre os mesmos, o que também as torna infelizes. É oferecida uma segunda chance a Montag, mas as respostas de Capitão Beatty não o satisfazem e é Faber, um aposentado professor de inglês conhecido por seu comportamento subversivo que começará a fazer com que Montag entenda o mundo em que vive e possa tomar uma decisão informada sobre que lado tomar.
A crítica social de Fahrenheit 451 é prejudicada por uma visão pouco clara do que é e como funcionam, de fato, censura e opressão. Também não fica claro como o universo distópico do livro consegue tanto avanço tecnológico com o conhecimento tão restrito – onde caberia uma pontual discussão da questão de classes temos uma oportunidade desperdiçada.
A prosa de Bradbury, por sua vez, é atravancada pelo uso constante de metáforas que nem sempre acrescentam informações interessantes e cujo valor lírico é questionável. O mote de Fahrenheit 451 é inegavelmente brilhante. A proposta de pensar uma sociedade em que os livros são proibidos é interessante, mas fica prejudicada pela crítica social confusa e mal informada do autor. O estilo de Bradbury peca pelo excesso, o que torna a leitura cansativa apesar do enredo movimentado.  Ironicamente, a adaptação cinematográfica do diretor francês François Truffaut faz melhor proveito da ideia central de Fahrenheit 451

Nota: ♥♥♥