terça-feira, 19 de julho de 2016

Poética, Ana Cristina Cesar

Título: Poética
Autor: Ana Cristina Cesar
 Edição: São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

            A companhia das letras lançou em 2013 Poética, volume único reunindo os escritos de Ana Cristina Cesar e com curadoria de seu amigo e também poeta Armando Freitas Filho. Aqui encontramos os livros publicados em vida pela autora: Cenas de abril, Correspondência completa, Luvas de pelica e A teus pés:prosa/poesia, além dos póstumos Inéditos e dispersos, Antigos e soltos e Visita à oficina. O livro conta ainda com apresentação, posfácio e apêndice escrito por nomes de peso como Viviana Bosi e Heloisa Buarque de Hollanda. É recomendado para o leitor que desconhece a obra da poeta um passeio pelos esclarecedores textos teóricos, que pintam uma viva imagem de sua autora e trazem oportunas reflexões sobre seu projeto poético, antes de mergulhar na leitura dos poemas.
            A obra de Ana C é marcada por dois aspectos aparentemente opostos, mas que aqui se complementam: um gosto pelo diálogo com o leitor e pelas marcas de uma linguagem atual, fresca, focada no plano semântico e uma profunda erudição em suas referências e procedimentos – ao mesmo tempo que nos sugere uma produção “in loco”, a leitura atenta nos faz perceber o artifício por trás desse efeito. No universo de Ana Cristina Cesar é clara a influência do método de T.S.Eliot em The Wasteland, com sua captura de vozes cotidianas intercortadas, há fortes ecos do projeto poético de Fernando Pessoa e da obra de poetas como Walt Whitman e Manuel Bandeira. Tudo isso é feito de forma relativamente explícita, assim como o jogo de interlocuções que constantemente convida o leitor para dentro da poesia para, logo em seguida, atordoá-lo com seus cortes bruscos e suas ironias.
             A predileção pelo tom confessional intenso e o flerte com a prosa que surge em seu trabalho com os gêneros textuais diário e carta sugerem uma relação fascinante com a expectativa que existe em torno da “escrita feminina”, sempre subvertida pela autora de forma irônica. Sua poesia trabalha os relacionamentos, o corpo, as questões existências, o movimento da viagem e o movimento do autor para o leitor sem ser indulgente ou pretensiosa.
            Seu enquadramento na geração marginal dos anos 70 deveu-se, em grande parte, a sua estréia na coletânea 26 poetas hoje organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, embora possa ser contestada na sua recusa à certos métodos da época como o uso do poema-minuto e sua vocação acadêmica; categorizações à parte, é indiscutível o impacto do legado de Ana Cristina Cesar na poesia brasileira – celebrado, esse ano, pela FLIP.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

A vegetariana, Han Kang

Título: A vegetariana
Autora: Han Kang
Tradução: Yun Jung Im
Edição: São Paulo: Devir, 2013.

            Han Kang é uma escritora sul-coreana bastante premiada em seu país natal e com uma considerável lista de obras publicados. A vegetariana, em seu formato romance-novelas, é o título responsável por, finalmente, chamar atenção do público ocidental, rendendo-lhe inclusive um Man Booker International Prize este ano. A autora representa uma geração de escritores coreanos menos preocupados com as chamadas “questões nacionais” fortemente presentes no país de independência consideravelmente recente, mas história antiga. No entanto, é ainda marcada pela inescapável reflexão que muito progresso em pouco tempo ocasiona, só que pelo viés do cotidiano e das pressões sociais, provavelmente o motivo pelo qual torna-se também mais acessível ao público estrangeiro.
            A vegetariana demonstra magistralmente em suas três novelas como pequenas rebeliões podem impulsionar a completa ostracização do indíviduo que perturba, ainda que minimamente, a ordem e leva o descompasso entre o indivíduo e a vida em grupo até as últimas consequências.
            O livro divide-se em três novelas que funcionam independentemente, mas também estão interligadas e estabelecem certa sequência de eventos – que é afrouxada pelas informações sobre o passado das personagens espalhadas ao longo das três de forma bastante inteligente. A personagem central aqui é Yeong-hye e seu núcleo familiar e cada novela possui um narrador diferente dentro desse círculo.
            A primeira novela leva o mesmo nome que o livro e é narrada pelo marido de Yeong-hye. Ele apresenta-nos sua esposa (a quem jamais refere-se pelo nome) como uma mulher comum, sem uma beleza ou inteligência excepcional e que jamais despertou-lhe emoções intensas. Pelo contrário, vê nessa banalidade do relacionamento dos dois sua maior qualidade: a mulher é alguém que limpa a casa, faz sua comida e com quem pode manter relações sexuais sem ter que pensar muito sobre essas coisas. A única reclamação que tem é o hábito da esposa de não usar sutiã.
            Um dia, sua esposa decide parar de comer carne após ter um sonho – e as descrições desse sonho são um dos únicos vislumbres que temos da sua interioridade – e parar de prepará-la também. Em um primeiro momento, ele acredita ser algo passageiro, mas conforme sua esposa mantém firme a resolução, o casamento dos dois começa a desmoronar. O conflito culmina em um almoço em família, em que os pais de Yeong-hye tentam intervir, mas acabam levando-a a uma tentativa de suicídio e subsequente internação.
            A segunda novela chama-se “A mancha mongólica” e é narrada pelo cunhado de Yeong-hye, um artista audiovisual que vive efetivamente sustentado pela esposa, com quem tem um filho pequeno.  Ele é quem leva a desacordada Yeong-hye ao hospital e começa a nutir uma obsessão por ela ao descobrir que, assim como seu filho, ela possui uma mancha mongólica esverdeada, mas na nádega. Essa mancha desencadeia uma visão artística cuja força o impele a arriscar seu casamento para vê-la concretizada em um controverso trabalho.
            Por fim, “Árvores-flamas” traz a visão da irmã mais velha de Yeong-hye, sua sensação de culpa por ter superado as dificuldades da infância e por ter falhado em proteger a irmã dos homens em sua vida – o pai, o marido de Yeong-hye e o seu próprio marido. A proximidade que o laço entre as duas cria faz com que ela seja a única a perceber a fragilidade da irmã e também com que, ao acompanhar sua loucura, sinta intensamente quão próxima está de perder-se - seu filho é a âncora que a prende ainda na realidade, um tipo de relação que Yeong-hye desconhece.
            Yeong-hye não torna-se simplesmente vegetariana como uma decisão política e consciente, mas sim cai irresistivelmente em um processo de lenta metamorfose kafkiana, deixando o mundo dos seres vivos para, dolorosamente, fazer parte do mundo vegetal. A prosa belíssima de Han Kang adapta-se aos seus narradores de maneira brilhante -  a aridez da primeira novela, contaminada pela total falta de sensibilidade e imaginação de seu narrador, a idealização exagerada da figura de Yeong-hye na segunda, dessa vez contamidade pelo excesso de sensiblidade e imaginação de quem narra e, por fim, o relato amoroso e sofrido da irmã e mulher na terceira juntam-se para humanizar a protagonista do romance e fazer-nos sentir a agonia da sua impossibilidade de comunicação – ela é uma figura que em mãos menos talentosas poderia ser caricata, mas que aqui é uma vítima dos papéis que lhe são impostos, cujo sofrimento pungente comove na sua recusa de exercer qualquer tipo de papel predatório. A tradução dá conta do recado, trazendo informações importantes sobre alguns pronomes de tratamento e até mesmo culinária da Coréia, porém a diagramação e tratamento do texto deixam a desejar. De qualquer forma, A vegetariana é uma obra marcante, belíssima e que merece o reconhecimeto que tem angariado recentemente.

Nota:  ❤❤❤❤❤

quinta-feira, 7 de julho de 2016

A amiga genial, Elena Ferrante

Título: A amiga genial
Autora: Elena Ferrante
Tradução: Maurício Santana Dias
Edição: São Paulo: Biblioteca azul, 2015.

            Primeiro livro de uma série de quatro romances, A Amiga Genial foi escrito pela italiana Elena Ferrante. Reclusa, Ferrante recusa-se a dar entrevistas que não sejam escritas e sua foto não consta na orelha do livro. Ela acredita que é benéfico um certo anonimato do autor para que a obra seja apreciada, embora essa escolha peculiar tenha, inadvertidamente ou não, chamado atenção do público.
            De qualquer forma, a escolha da autora faz sentido quando olhamos para o ponto de partida da narrativa: Lenu é informada do desaparecimento de sua amiga de infância, Lila. As circunstâncias são ainda mais curiosas: Lila deliberadamente apagou todos os traços de sua existência da casa que deixou para trás – roupas, fotos, bens em geral. Lenu intui que o objetivo da amiga é deixar essa existência para trás e por isso decide documentá-la com o máximo de detalhes possíveis por meio da escrita.
            Nossa narradora rememora a infância das duas meninas em um bairro suburbano da Napóles dos anos 50, um período marcado pelo pós-guerra. Ambas são de famílias de poucos recursos, embora a condição de Lenu seja um pouco melhor tanto financeiramente quanto à estrutura familiar – uma vantagem que não é tão nítida assim em um ambiente hostil, competitivo, marcado pelo domínio violento da mafia e por uma rígida estrutura patriarcal. As meninas crescem juntas, inseparáveis tanto nas brincadeiras quanto na escola. Lila começa a chamar atenção por sua inteligência, o que desperta o desejo de Lenu de também ser admirada, que é uma criança mais bonita e comportada do que a amiga.
            Assim, ambas começam uma silenciosa competição que compreende desde as notas escolares até ficar frente a frente com um homem temido pelas crianças do bairro. Lenu admira e inveja a espontaneidade de Lila, ao mesmo tempo que vê-se como seu oposto, sempre tendo que fazer um esforço para alcançá-la. As diferenças vão tornando-se ainda mais evidentes com a chegada da adolescência.
            Lila é impedida de seguir com os estudos e Lenu, com muito custo e graças à intervenção de sua professora, consegue seguir adiante para o ginasial.  A puberdade chega e com ela, Lenu vê sua aparência mudar rápida e intensamente – ganha peso, acne, passa a precisar de óculos. Enquanto isso, Lila deixa de ser a menina magrela e sua aura assustadora torna-se um ar misterioso, chamando atenção de todos os meninos do bairro. Lila tenta ainda acompanhar os estudos da amiga pela biblioteca, fato descoberto por Lenu acidentalmente, mas eventualmente desiste e entrega-se à sua realidade. Essa entrega tem, porém, um único objetivo: superá-la de qualquer forma.
            A narrativa é feita de capítulos curtos, movida pela ação constante e cheia de reviravoltas que só dão certo graças ao cenário intenso escolhido pela autora. Napóles e suas tensões constantemente nos lembra dos perigos que Lenu e Lila enfrentam simplesmente por serem meninas e jovens em um mundo extremamente violento e opressor. Se o mundo exterior é perigoso, o interior é um refúgio duvidoso: Lenu é aterrorizada pela própria insegurança, pelo medo de falhar em suas ambições acadêmicas, pela possibilidade de passar vergonha frente aos outros; enquanto isso, Lila tem que lidar com uma família sem perspectivas, um irmão e um pai explosivos e atenção indesejada de rapazes perigosos do bairro. Apesar de parecer forte, confessa passar por episódios do que chama de “desmarginação”. Durante esses momentos, ela passa por algo próximo de uma dissociação e a realidade parece-lhe distante e repulsiva.
            O relacionamento de Lila e Lenu é o coração de A amiga genial. Elas tem uma a outra como medida e alimentam por meio deste relacionamento o desejo de se desafiar e ascender. Mesmo nos momentos de crise ou de afastamento, o retorno parece inevitável. Não é uma amizade saudável, mas Lila e Lenu não têm modelos de relacionamentos saudáveis para seguir, então tentam forjar um meio de fazer com que suas vidas sigam paralelamente – é particularmente pungente a cena em que Lenu prepara Lila para sua noite de núpcias, triste de sabê-la prestes a ser “emporcalhada”. Há um desejo de união como a união da infância – pura, inocente – mas uma impossibilidade de trabalhá-la de outra forma ou comunicar por palavras. Resta para as meninas apenas o gesto e a obsessão de ecoar uma à outra, que conduzem a narrativa de Ferrante comoventemente, cativando o leitor.

Nota:❤❤❤❤