terça-feira, 26 de abril de 2016

Norte e Sul, Elizabeth Gaskell

Título: Norte e Sul
Autor: Elizabeth Gaskell
Tradução: Carlos Duarte e Anna Duarte
Edição: São Paulo: Martin Claret, 2015.

            Norte e Sul surgiu como um folhetim em 1845, na Household Words, revista cujo editor era Charles Dickens e, em 1855, foi revisto e publicado em sua forma final. Elizabeth Gaskell é um nome indiscutivelmente relevante da literatura da Era Vitoriana e em seu romance há uma clara preocupação com entender as relações sociais de forma a solucionar seus conflitos.
            Margaret Hale é uma jovem de família com certo status social e viveu boa parte de sua infância e adolescência em Londres, com uma tia rica. Apesar disso, sua família possui meios mais limitados uma vez que o casamento de sua mãe com um paróco foi financeiramente desvantajoso e motivado pela afeição genuína. Ao retornar para o interior, descobre que o ídilio bucólico com o qual fantasiava tanto, Helstone, logo será abandonado: a fé de seu pai oscila e ele decide abandonar seu cargo como pastor. A única alternativa para a família é mudar-se para o poluído e industrial Norte, mais especificamente a fícticia cidade de Milton.
            Lá, Margaret vê seus recursos financeiros escassos e seu círculo social extremamente limitado. Motivada por suas obrigações filiais, Margaret busca apaziguar o gênio difícil da sua mãe e ser compreensiva com seu pai, apesar de sentir dificuldades em aceitar seus questionamentos religiosos. Ele trabalha agora como professor e logo trava uma amizade com Mr. Thorton, industrial da área que deseja retomar os estudos dos clássicos abandonados devido às demandas do trabalho. Thorton é bem sucedido, obstinado e perspicaz e logo passa a frequentar a residência dos Hale.
            Apesar de perspicaz, Thorton não parece ser o suficiente para entender que suas constantes discussões com a filha de seu professor não são mero flerte e que o interesse de Margaret não é alimentado pelas visões de mundo contrastantes que os leva a discutir. A principal tese do romance, expressa pela sua personagem central, é a crença na conciliação entre a classe trabalhadora e os detentores dos meios de produção por meio da atitude cristã de olhar pelo outro e tratá-lo com dignidade, reconhecendo a situação de dependência em que ambos se encontram, enquanto Thorton considera absurdo prestar conta de seus planos e visões com qualquer pessoa.
            Enquanto uma greve dos trabalhadores ocorre em Milton, a doença de Mrs Hale aflige a família de Margaret. Tanto Thorton quanto Margaret acabam tornando-se um para o outro uma fonte de apoio quando menos esperam, embora um episódio em que o injustiçado irmão de Margaret visita escondido a família para despedir-se da mãe – certamente um lembrete de Gaskell de que as autoridades não são inquestionáveis – e a lembrança da primeira rejeição torturam os sentimentos de Thorton, mas também cimentam o relacionamento.
            Margaret é uma mocinha sofredora, como manda o figurino. É também de inteligência viva e princípios que despertam o respeito de todos à volta, o que impede que o romance caía no marasmo mesmo quando as reviravoltas são manipulativas, uma vez que o foco da narrativa em terceira pessoa está principalmente em seus pensamentos e sentimentos. A análise social proposta pelo romance é limitada, no entanto, pela insistência na solução religiosa – embora a figura de Mr. Hale e seus conflitos insinue uma redenção dessa falha, o destino para o qual ele encaminha sua família deixa clara a lição de moral planejada pela autora.

            Um típico romance social da Era Vitoriana, Norte e Sul garantiu, indiscutivelmente, o lugar de sua autora na História da Literatura britância e vale a leitura para quem busca conhecê-la.


Nota:  ❤❤❤

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Minha vida de menina, Helena Morley

Título: Minha Vida de Menina
Autor: Helena Morley
Edição: São Paulo, Companhia das Letras, 1998

            Minha vida de menina é o único livro de Helena Morley, pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant, o que só aumenta o fascínio em torno dele. Trata-se de uma coletânea de entradas do diário que a autora manteve, incentivada pelo pai, durante a sua meninice na Diamantina de 1893 até 1895 e que foram posteriormente organizadas para a publicação pela primeira vez em 1942. A obra é considerada uma pitoresca representação da vida do interior mineiro e sua prosa despojada parece adiantar a proposta modernista, o que fez com que alguns críticos considerarem uma revisão posterior por parte da autora. 
            Helena narra uma vida simples com seus pais, irmão e irmã em uma casa no campo, próxima também da propriedade de sua abastada avó que a tem como neta favorita. Apesar disso, as condições da família são bastante precárias, uma vez que seu pai trabalha com mineração e os rendimentos oscilam de acordo com sua sorte.
            Não há tanto espaço assim para sofrimentos na mente ativa de Helena e ela é uma figura carismática para o leitor tanto quanto para seus familiares – é inteligente e vivaz, afeita ao trabalho que a mantenha ocupada, em especial o físico e de uma sinceridade cômica e mal contida. Apesar das restrições da época, Helena é incentivada por sua família a seguir pensando independentemente e é admirada por todos por sua inteligência.
            As memórias aqui retratadas permitem uma visão interessante das relações sociais em um país em que o fim do regime escravocata era recente e em que a corrida do ouro perdia o gás. As relações de dependência entre as classes sociais, as superstições locais, as relações familiares ameaçadas pelos conflitos ocasionados pelo dinheiro e pela competitividade e o espírito não-conformista de Helena fazem com que as entradas tenham um tom de lição, encerradas sempre por meio de uma observação afiada, questionando a ordem das coisas. Ao longo do livro, acompanhamos a vida da protagonista e seu desenvolvimento,  o que o aproximando também de um romance de formação, apesar de ser um diário.
            Ainda sobre a obra, Roberto Schwarz escreveu o brilhante ensaio “Outra Capitu” em que analisa como o caráter progresssista das relações sociais descritas na obra – preconceitos, superstição e costumes são alvo da análise implacável de Helena – deve-se, principalmente, ao momento ecônomico do país que incentivou um afrouxamento na centralização do poder patriarcal, além da influência protestante exercida pelo lado inglês da família Morley. Schwarz aponta as semelhanças entre as origens de Helena e Capitu em um ensaio que vale a leitura para os interessados nas representações literárias deste período histórico do Brasil.
            A prosa episódica, objetiva e sem rodeios é cativante e consegue manter a atenção do leitor – o suficiente para, também, dispertar a interessante discussão sobre o quanto dela é produto da espontaniedade infantil e quanto é artifício. Ao mesmo tempo, é uma leitura que atinge um amplo público, com potencial para agradar aos mais novos também. A escrita de Helena Morley consegue retratar de maneira colorida um período intenso pelo qual as meninas passam, coincidindo aqui com um período intenso de nosso país. Com sua entrada na lista de livros obrigatórios da FUVEST, podemos contar com seu retorno às livrarias. 

Nota: ❤❤❤❤

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O coração é um caçador solitário, Carson McCullers

Título original: The heart is a lonely hunter
Tradução: Sonia Moreira
Edição: Companhia das Letras, 2007.

            O coração é um caçador solitário é o romance de estreia da autora norte-americana Carson McCullers, publicado pela primeira vez em 1940. O livro foi sucesso de público, colocando sua autora na lista de mais vendidos.
            O cenário do romance é em uma cidade do sul dos Estados Unidos no final da década de 30. Os capítulos alternam o foco narrativo de um personagem para o outro, como inicial apresentando-nos à amizade entre os únicos mudos da cidade – o grego Antanapoulos e o judeu Singer. A rotina calma dos dois deixa de existir quando Antanapoulos começa a apresentar comportamento violento, desencadeando a decisão de sua família de interná-lo. Singer vai morar em um quarto de um pensionato e, aos poucos, novas figuras começam a surgir em sua vida.
            Biff Brannon é dono de um restaurante em que trabalha com sua mulher, Alice. Tem como hábito acompanhar avidamente as notícias e arquivar jornais. Mick é filha dos donos do pensionato e obcecada com música. Seu maior desejo é poder aprender a tocar um instrumento, mas as condições de sua família fazem desse um sonho impossível. Jake Blount, de passagem na cidade, é um trabalhador que sonha com uma revolução comunista. Benedict Copeland é o médico da cidade, que trabalha exaustivamente e vê em seus filhos o fracasso do sonho de superar pelo estudo o terrível fardo da escravidão que carregam os negros americanos. Singer é o ponto fixo em torno do qual esses personagens orbitam, ocasionalmente vislumbrando uns aos outros e, dois momentos pivotais do livro, encontrando-se todos.
            A amizade de Singer com essas pessoas é fudamentada, principalmente, no desejo delas por comunicação. Sua mudez o faz quase um ser místico para os personagens que enxergam no seu silêncio a compreensão de suas angústias mais internas, que hesitam em verbalizar com alguém que possa de fato respondê-los. Singer, no entanto, sente-se solitário sem Antanapoulos - seus sentimentos por ele são próximos aos de ordem romântica, mas em nenhum momento é explicitado se é essa a natureza do relacionamento dos dois – e enxerga nessas pessoas a representação da ausência da compreensão que acreditava encontrar em seu amigo mudo.
            A impossibilidade da comunicação real e suas consequências é o fio condutor da narrativa e também o guia os personagens aos seus desfechos: os planos arruinados de Mick, o fracasso do sonho de Dr. Copeland, a desistência e partida de Jake e a solidão cada vez mais intensa de Biff. A prosa de McCullers é fluída e objetiva, mudando levemente seu tom para dar conta melhor do personagem que recebe o foco narrativo em cada capítulo. São particularmente pungentes os capítulos dedicados ao Dr. Copeland e à Mick. Apesar da vida miserável e árida das suas personagens, a autora acerta ao conferir às vidas interiores deles – Mick, inclusive, explicita essa divisão ao referir-se à sua obsessão com música e com Singer como “o mundo de dentro” – é complexa e rica e a negociação entre a realidade e a interioridade surge como um processo dolorido reservado a todos os personagens.
            Publicado quando a autora tinha apenas 23 anos, O coração é um caçador solitário explora a miséria humana enquanto consciente das diferentes forças sociais que a causam, criando uma vívida imagem e personagens tocantes e complexas. 

Nota: 

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Sharp Objects, Gillian Flynn

Título: Sharp Objects
Autora: Gillian Flynn
Edição: Shaye Areheart Books, 2006.

[Aviso aos navegantes: tentei ser o mais vaga possível, mas essa resenha acaba entregando alguns pontos importantes do livro.]

Gillian Flynn é autora de romances de suspense e crítica de televisão para a Entertainment Weekly, uma das principais publicações norte-americanas da área. Sua primeira obra publicada foi Na própria carne (Sharp Objects), em 2007. O romance Garota Exemplar (Gone Girl, 2012) catapultou a carreira da autora, que assinou também o roteiro da adaptação cinematográfica dirigida por David Fincher de 2014 com Ben Affleck e Rosamund Pike nos papéis principais.
            Sharp Objects é narrado por Camille Preaker, uma jornalista que recebe a missão de cobrir uma série de assassinatos cujas vítimas são meninas em sua cidade natal. Após anos em Chicago, ela deve retornar para Wind Gap, uma pequena cidade interiorana onde seu nome é sinônimo de um pequeno império: sua mãe herdou uma lucrativa criação de porcos e uma bela casa vitoriana.
            Camille vai aos poucos retomando contato com pessoas do seu passado – sua opressora mãe, Adora, sua meia irmã Amma,  e suas amigas do colegial – além aproximar-se do policial responsável pelo caso, Richard. Conforme Camille vai avançando em suas investigações e em seus relacionamentos pessoais, a resposta para o mistério local vai se tornando cada vez mais óbvia: o verdadeiro desafio para a protagonista é empoderar-se o suficiente para encarar os fatos e fazer o que precisa ser feito. Os sentimentos conflitantes causados pela morte de sua irmã mais nova voltam a persegui-la, a rejeição de sua mãe e a sensação de estranhamento causada por seu status de bastarda na família (Camille é o resultado de um relacionamento de sua mãe durante a adolescência e jamais conheceu seu pai) tornando-a cada vez mais instável.
            É acertada a escolha da autora em focar em sua protagonista e nas personagens que povoam seu universo ao invés de tentar confundir o leitor o tempo todo – e é justamente por isso que a guinada nos capítulos finais parece despropositada e apressada, com a única finalidade de surpreender o leitor. Adora e sua cidade – ou melhor, seu reino -  são fruto metade dos contos de fada, metade das narrativas góticas e um verdadeiro trunfo da autora: há algo verdadeiramente perturbador na ideia da figura materna como fonte de horror e é isso que faz com que, apesar de irregular, Sharp Objects seja um romance cativante.
            Flynn também procura aqui deixar clara sua proposta como autora. Seu interesse está em explorar vilã, mulheres perturbadoras e mulheres perturbadas. Ao longo da investigação é repetido constantemente que mulheres não comentem o tipo de assassinato que estamos acompanhando. As relações entre as personagens femininas são manipulativas e tóxicas. Amma e suas amigas, meninas que acabaram de entrar na adolescência, são maliciosas. As mulheres não são apresentadas como inocentes, acolhedoras  ou covardes – talvez esse papel caiba mais aos homens, como Richard, o editor do jornal onde a protagonista trabalha e o padrasto de Camille. São mulheres que colocam a narrativa em ação e mulheres que encontram as respostas, mas elas não são boas mulheres.
            Se é fascinante ver uma autora ter coragem de usar todos esses esteréotipos negativos da figura feminina que existem no inconsciente coletivo, é também atividade exige um equilíbrio delicado que, às vezes, a autora perde. Na mídia, as mulheres tem sua complexidade ignorada, sendo previsiveis e superficiais em sua construção.  As personagens femininas de de Flynn usam essa aparente falta de complexidade como uma máscara para manipular sua audiência e escapar de seus crimes.
             A obra da autora consegue ser de fácil consumo graças à uma prosa objetiva, mas cativante e obtém amplo alcance justamente por lidar com essas questões de gênero raramente articuladas em nossa sociedade. Em certo ponto do romance, Amma, a adolescente complicada, abandonada à própria sorte entre homens que a objetificam apesar de seus treze anos e uma mãe que a vitimiza – recusando-se, também, a enxergar sua humanidade, afirma em certo ponto do romance: “Sometimes if you let people do things to you, you're really doing it to them.  Ela acaba, por fim, a ser vítima e algoz ao mesmo tempo, além de qualquer salvação graças ao condicionamento que a torna incapaz de conexões reais. Está aí o ponto de partida da obra de Gillian Flynn.

Nota: 




terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Landline, Rainbow Rowell

Título: Landline
Autora: Rainbow Rowell
Edição: London: Orion Books, 2014.


Rainbow Rowell é autora norte-americana que ganhou reconhecimento por suas obras voltadas para jovens adultos – Fangirl e Eleanor & Parks. Apesar disso, Landiline, assim como seu romance de estréia Attachtments, tem como público alvo adultos.
No romance, a personagem principal é Georgie, uma escritora para seriados de televisão que recebe a chance pela qual sempre esperou: finalmente consegue que um produtor financie o piloto da série que sonha escrever desde os tempos de faculdade. O problema é que, para conseguir entregar os roteiros exigidos para fechar o negócio, terá que passar o recesso de natal trabalhando. Seu marido decide, mesmo assim, levar adiante os planos da família adiante e viaja com as duas filhas do casal para a casa de seus pais, enquanto Georgie fica para trás tentando se dedicar ao seu trabalho, mas perturbada pela possibilidade de seu casamento estar prestes a acabar.
O enredo sofre de um excesso de informação – os flashbacks; a conturbada relação platônica de Georgie e seu parceiro de escrita, Seth; os diferentes relacionamentos da protagonista com sua família e o drama com seu marido, o introspectivo Neal – e falha por não encontrar uma resolução real. As batalhas pessoais de Georgie para conseguir equilibrar vida pessoal e profissional,  sua história na carreira e o relacionamento platônico com Seth lembram bastante 30 Rock, sitcom americano escrito por Tina Fey que praticamente implora para ser uma das referências da personagem central, mas ao não ser mencionado dá a péssima impressão de que a autora prefere que seu leitor não perceba a nitída influência.
Além dos dramas pessoais, o romance ainda traz um elemento de fantasia: Georgie passa os dias do recesso na casa de sua mãe e lá usa o telefone residencial para telefonar para o residencial da família de Neal – que se recusa a atendê-la no celular. Porém, Georgie logo percebe que não está falando com o Neal do presente, mas sim com o Neal do passado, mais exatamente uma semana antes de pedi-la em casamento. Os dois dividem longas conversas sobre relacionamentos enquanto Georgie reavalia a vida dos dois juntos.
Como personagem, Georgie é bastante frustrante. Sua incapacidade de ter orgulho do próprio trabalho e a facilidade com que o enxerga somente como um problema quando é a única fonte de renda do casal, junto com o fato de que em nenhum momento ela parece perceber que um homem jamais se sentiria culpado por estar na posição em que ela está são irritantes e fazem com que Neal, que tinha tudo para ser um personagem que questiona estereótipos ao escolher ficar em casa com as filhas, torne-se somente um homem inseguro e incapaz de se comunicar de verdade. E, mesmo com o grande gesto dramático final, não há resolução para as questões que o livro aborda justamente por seu tratamento superficial do que poderia ser uma interessante reflexão sobre a dinâmica familiar nos dias de hoje.
O que faz com que, apesar de seus defeitos, Landline seja uma leitura prazerosa é a habilidade de Rainbow Rowell para escrever diálogos divertidos. Apesar disso, é impossível evitar, ao final da leitura, a sensação de que nada aconteceu de fato durante a narrativa e de que os personagens continuam como no começo.

Nota: 


domingo, 24 de agosto de 2014

The Secret History, Donna Tartt

Título: The Secret History
Autor: Donna Tartt
Edição: Penguin, Kindle Edition, 2011

           Donna Tartt é autora norte-americana e a recipiente do Pulitzer de 2014 por seu mais recente romance, The Goldfinch. Sua obra de estréia é The Secret History (em português, A história secreta, publicado pela Companhia das Letras) data de 1992 e causou forte impressão na crítica e no público.
            O famoso prólogo de Tartt funciona como um início in media res para o livro e, a partir do momento que sabemos o evento trágico que afetará o narrador, o calouro Richard Papen, resta descobrir o que leva a esse acontecimento e quais as consequências dele.
            Richard abandona a Califórnia, onde nasceu e foi criado por uma família relativamente humilde em que nunca se sentiu confortável, para estudar em Vermont. Abandona o plano de cursar medicina e tenta matricular-se em grego antigo, porém seu pedido de matrícula é negado. Descobre, por meio de seu professor de francês, que os alunos de grego fazem parte de um grupo curioso da faculdade organizado em torno do professor Julian. Ele aceita somente uma meia dúzia de estudantes que obrigatoriamente deverá cursar todas as disciplinas por ele ministradas. O resultado é uma experiência universitária isolada que afasta muitos alunos, porém a figura pitoresca do professor além do fascínio por seus jovens e misteriosos discípulos convencem Richard a insistir mais uma vez.
            Richard consegue, finalmente, sua admissão e passa a se enturmar com seus poucos colegas de classe. São eles Henry, um rapaz quieto e genial que domina uma porção de línguas; os belíssimos gêmeos Charles e Camilla; o jovem esportista Bunny e o extravagante Francis, cuja casa de campo torna-se palco de diversos finais de semana dos jovens. Todos agem como se fossem ricos – embora alguns sejam mais do que outros – e, exceto pelo novo aluno de Julian, conhecem-se há tempos. Richard, desejando impressionar os jovens que tanto o impressionam, inventa diversas mentiras para encobrir seu passado simples e consegue fingir também ser parte do universo dos amigos.
            A revelação feita no prológo é escolha perfeita para a atmosfera fortemente influenciada pelo pensamento grego que permeia a trama. A sensação de que as personagens caminham para a fatalidade ecoa a ideia  grega do destino como inescapável. A vida de Bunny é uma farsa, e ele mantém seu status graças aos amigos mais privilegiados do que ele; Henry é dono de uma mente calculista, fascinada pelas ideias “frias” dos clássicos que tanto aprecia ler; os gêmeos possuem uma relação marcada pela codependência e abuso muito mais complexa do que as aparências indicam; Francis aceita ser manipulado para manter a condição financeira oferecida por sua mãe, a quem despreza.
            Richard, por sua vez, é um narrador que desperta a desconfiança do autor. Seus relacionamentos são marcados por uma incapacidade de envolvimento real e sua obsessão por aparentar ser alguém erudito e sofisticado a qualquer custo o tornam indigesto para o leitor. Em certos momentos, revela pensamentos que o tornam abertamente repulsivo – especialmente no que tange seu desejo por Camilla e sua relação com a estudante californiana de artes cênicas, Judy. Aos poucos, sua participação nos eventos finais torna-se cada vez mais compreensíveis – e sua dificuldade para compreender os impulsos de Henry também.
            Tartt, no entanto, consegue centrar sua narrativa em um personagem desagradável sem prejudicar o fascínio que ela exerce no leitor – pelo contrário. A obsessão dos jovens com rituais dionísicos e com a ideia introduzida por Julian de que o que é belo causa também terror fazem parte de toda a narrativa graças à sua prosa elegante. Esse bom gosto ao narrar um crime reflete a possibilidade constantemente explorada pela obra da convivência entre o refinamento e a violência.
            É particularmente revigorante pensar que o romance é centrado em torno da faixa etária mais cobiçada pelo mercado editorial nas últimas duas décadas – os jovens adultos – porém não é uma obra feita com o intuito de agradar especificamente a esse público, o que a maioria dos autores procura fazer subestimando seus leitores. The Secret History recusa-se a acelerar seu ritmo, intercalando momentos de ação com momentos em que seus personagens preocupam-se com coisas tão prosaicas quanto a lição de casa a ser entregue. Os jovens que aparecem aqui são seres totalmente desenvolvidos: capazes, inteligentes, conscientes de certo e errado e ao mesmo tempo fascinados o suficiente com o prazer do discurso – como bons discípulos dos gregos antigos – para caminhar a linha tênue entre os dois enquanto discutem o que é heroísmo ou o desejo de imortalidade. Ao mesmo tempo, estão isolados do universo adulto de fato, e é por isso que sucumbem perante as consequências de suas ações. A leitura é uma caminhada trágica, porém bela. 

Nota: 

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Nu, de botas, Antonio Prata

Título: Nu, de botas
Autor: Antonio Prata
Edição: Companhia das Letras, São Paulo: 2013. 1ª edição.

            Antonio Prata é escritor paulista. Versátil, trabalha com roteiros para cinema e televisão além de uma coluna na Folha de São Paulo. Já publicou uma coletânea de crônicas chamada Meio intelectual, meio de esquerda cujo título é o mesmo de um de seus textos mais. Em Nu, de botas, Prata apresenta reminiscências de sua infância na São Paulo dos anos 80 de forma bem humorada.
            Com mais jeito de livro de memórias do que qualquer outra coisa, a obra é catalogada como uma coleção de crônicas e, embora todos os textos funcionem individualmente, a leitura completa obedecendo a ordem apresentada na edição é definitivamente a mais proveitosa. Alguns personagens e episódios são recorrências discretas, tornando-se espécie de running gags - piadas cujo efeito cômico torna-se cumulativo com sua repetição constante, mais comuns à linguagem cinematográfica e da televisão do que à literária.
            As crônicas são leves, engraçadas, abordadas com o intuito de  explorar o ponto de vista do Antonio criança (ficcionalizado, é claro). Tratam de pequenos eventos marcantes – as brincadeiras das crianças do bairro, o divórcio dos pais, a alfabetização, os animais de estimação, a chegada da irmã – conseguindo um equilíbrio impressionante entre a consciência do exagero infantil e o entendimento que ele é fruto do estranhamento do mundo que a infância proporciona.
            Merecem destaque “Ca ce ci co çu”, brilhante reflexão linguística sobre o poder subversivo de algumas palavras na visão infantil que cria uma divertida quebra de expectativa para o protagonista e “Banhos”, um hilário episódio de descoberta assombrosa sobre a sexualidade.
            Antonio Prata consegue segurar o tom leve de sua obra e raramente derrapa para um humor mais crasso – mesmo navegando no universo infantil onde o humor escatológico, por exemplo, é tão recorrente. O ponto baixo é, sem dúvidas, “Patos”, que tenta trazer humor para um momento que revela um pouco mais do que a simples ignorância infantil que seu autor coloca em primeiro plano.
            Apesar disso, é inegável a competência de Antonio Prata e suas reminiscências sobre a infância são particularmente agradáveis para aqueles que viveram os anos 80.

Nota: