segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Anatomia do Paraíso, Beatriz Bracher

Anatomia do Paraíso, Beatriz Bracher
Título: Anatomia do Paraíso
Autor: Beatriz Bracher
Edição: São Paulo: Editora 34, 2015.

            Título mais recente da autora paulistana Beatriz Bracher, Anatomia do Paraíso recebeu recentemente o Prêmio Rio de Literatura. A carreira da autora é impressionante e versátil: além de romances e contos, assina também roteiros de filmes e é uma das fundadoras da Editora 34, responsável pela publicação de seus romances. Além de seu título mais recente, seu livro Antônio chamou atenção da crítica e foi premiado em terceiro lugar com um Jabuti.           
            Anatomia do Paraíso divide seu foco narrativo entre dois personagens centrais, cuja oposição em que se encontram é o alicerce do enredo e também o que permite o desenrolar da tensão que carrega o romance: Félix é sustentado pelo pai e está escrevendo sua tese sobre o Paraíso Perdido de Milton, obra com a qual é obcecado desde o colegial; Vanda, sua vizinha, trabalha no IML, é responsável pela irmã mais nova e está estudando para o vestibular de medicina. Os dois moram no Rio de Janeiro, em um conjunto de apartamentos pequenos, estilo kitnet, do qual podem observar a favela e sua infinidade de janelas.
            Félix conhece o poema de Milton profundamente e seus mistérios o atormentam – estuda extensivamente o original e a tradução, assim como também é intrigado com a cegueira de seu autor, que supostamente teria ditado a obra para sua filha. Sofre de epilepsia, mantém relacionamentos sexuais com várias mulheres e com seu “amigo” soldado, possui uma relação tortuosa com o pai e é perseguido por uma forte sensação de alienação. É um personagem que exorcisa uma figura que nossa sociedade tem confrontado constantemente sem saber solucionar: o intelectual abjeto, ao mesmo tempo inteligente e capaz de insights, mas a quem falta humanidade, decência e limites – o mesmo objeto de estudo de obras como Lolita ou da especulação midíatica que cerca pessoas como Woody Allen e Roman Polanski. É próximo de Vanda, mas ao mesmo tempo sente-se afastado de sua energia prática, tão oposta ao seu temperamento difícil.
            Vanda vem de uma família simples, valoriza os estudos – maneira pela qual conseguiu sua atual posição – mas também é uma pessoa ligada ao corpo em um sentido bem físico: além de seu emprego preparando cadáveres após a autopsia, trabalha em uma academia como professora e há diversas cenas em que a vemos estudando os aspectos biológicos e anatômicos do corpo humano. Ela é uma mulher prática, ética e que se esforça para cuidar de sua meia-irmã mais nova, Maria Joana, uma pré-adolescente que não recebeu muitos cuidados ou amor antes de mudar-se com Vanda.
            A figura de Félix permite-nos diversas reflexões ao longo do livro: desde sua obsessão pelas traduções do Paraíso Perdido que, ironicamente, tornam Anatomia do Paraíso praticamente impossível de traduzir – talvez seja possível para outras línguas latinas, mas para as germânicas e em especial o inglês, não – até sua queda moral, charfundando no que há de mais abjeto do ser humano em paralelo ao trajeto da queda de Satã e da perversão do paraíso original. Félix é uma figura que afasta o leitor e causa-lhe repulsa extrema em alguns momentos. Já a figura de Vanda permite-nos a conciliação com a obra ao norteá-la positivamente com sua capacidade de enxergar e respeitar o outro. No entanto, resumi-los à bons ou maus personagens é um empobrecimento que Anatomia do Paraíso não permite: ambos são complexos e ambíguos, desconcertantemente consciêntes de suas próprias falhas.
            A violência sexual é um tema tão presente na obra quanto a reflexão metalinguística e, de certa forma, aproximados na medida em que ambos são trabalhados como um problema enraizado na comunicação. É muito comum que autores esquivem-se de realmente trabalhar essa questão além de cenas construídas para chocar de forma barata o leitor ou como uma justificativa clichê para explicar os desvios da norma dos personagens. O confronto entre Félix e Vanda, no entanto, explora satisfatoriamente o tema em toda sua profundidade. Ao mesmo tempo, seu desfecho não é um desfecho solucionador e a autora acerta a mão ao assim fazê-lo, fugindo de sentimentalismos pouco convincentes.
            Satisfatório – em seu sentido pleno e não como sinônimo de mediano - é um termo adequado para um romance que trabalha brilhantemente as tensões que constrói internamente sem esquivar-se delas no final. Como um poema, como o Paraíso Perdido, a autora dirige magistralmente a intensidade do romance, reconhecendo o momento certo de deixar as forças criadas correrem livres para depois serem novamene domadas. Satisfaz-nos mesmo com seu final que, com dois nascimentos marcantes para seus personagens, fica longe de sugerir uma redenção total.
            A prosa de Bracher tem um fluxo fluído e firme, e impressiona com uma estrutura eficiente que permite inclusive respiros de experimentação: o raro uso da segunda pessoa do singular (para o bom brasileiro, “você”), pequenos trechos de fluxo de consciência em momentos chave de tensão psicológica na narrativa e uma erudição impressionante que enriquece o texto ao estabelecer diálogo com outras obras (e que podem ser encontradas em um excelente índice remissivo que entrega a experiência de editora de sua autora). A palavra certa no lugar certo, obsessão de Félix, parece ser compartilhada por sua criadora.

            Anatomia do Paraíso é uma realização impressionante de uma autora madura e com uma visão clara a realizar e, talvez, uma das mais impressionantes da nossa literatura nos últimos anos.

Nota: ❤❤❤❤❤

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