Anatomia do Paraíso, Beatriz Bracher
Título: Anatomia do Paraíso
Autor: Beatriz Bracher
Edição: São Paulo: Editora 34, 2015.
Título
mais recente da autora paulistana Beatriz Bracher, Anatomia do Paraíso recebeu recentemente o Prêmio Rio de
Literatura. A carreira da autora é impressionante e versátil: além de romances
e contos, assina também roteiros de filmes e é uma das fundadoras da Editora
34, responsável pela publicação de seus romances. Além de seu título mais
recente, seu livro Antônio chamou
atenção da crítica e foi premiado em
terceiro lugar com um Jabuti.
Anatomia do Paraíso divide seu foco
narrativo entre dois personagens centrais, cuja oposição em que se encontram é
o alicerce do enredo e também o que permite o desenrolar da tensão que carrega
o romance: Félix é sustentado pelo pai e está escrevendo sua tese sobre o Paraíso Perdido de Milton, obra com a
qual é obcecado desde o colegial; Vanda, sua vizinha, trabalha no IML, é
responsável pela irmã mais nova e está estudando para o vestibular de medicina.
Os dois moram no Rio de Janeiro, em um conjunto de apartamentos pequenos,
estilo kitnet, do qual podem observar
a favela e sua infinidade de janelas.
Félix
conhece o poema de Milton profundamente e seus mistérios o atormentam – estuda
extensivamente o original e a tradução, assim como também é intrigado com a
cegueira de seu autor, que supostamente teria ditado a obra para sua filha.
Sofre de epilepsia, mantém relacionamentos sexuais com várias mulheres e com
seu “amigo” soldado, possui uma relação tortuosa com o pai e é perseguido por
uma forte sensação de alienação. É um personagem que exorcisa uma figura que
nossa sociedade tem confrontado constantemente sem saber solucionar: o
intelectual abjeto, ao mesmo tempo inteligente e capaz de insights, mas a quem
falta humanidade, decência e limites – o mesmo objeto de estudo de obras como Lolita ou da especulação midíatica que
cerca pessoas como Woody Allen e Roman Polanski. É próximo de Vanda, mas ao mesmo tempo sente-se afastado de sua
energia prática, tão oposta ao seu temperamento difícil.
Vanda
vem de uma família simples, valoriza os estudos – maneira pela qual conseguiu
sua atual posição – mas também é uma pessoa ligada ao corpo em um sentido bem
físico: além de seu emprego preparando cadáveres após a autopsia, trabalha em
uma academia como professora e há diversas cenas em que a vemos estudando os
aspectos biológicos e anatômicos do corpo humano. Ela é uma mulher prática,
ética e que se esforça para cuidar de sua meia-irmã mais nova, Maria Joana, uma
pré-adolescente que não recebeu muitos cuidados ou amor antes de mudar-se com
Vanda.
A
figura de Félix permite-nos diversas reflexões ao longo do livro: desde sua
obsessão pelas traduções do Paraíso
Perdido que, ironicamente, tornam Anatomia
do Paraíso praticamente impossível de traduzir – talvez seja possível para
outras línguas latinas, mas para as germânicas e em especial o inglês, não –
até sua queda moral, charfundando no que há de mais abjeto do ser humano em
paralelo ao trajeto da queda de Satã e da perversão do paraíso original. Félix
é uma figura que afasta o leitor e causa-lhe repulsa extrema em alguns momentos.
Já a figura de Vanda permite-nos a conciliação com a obra ao norteá-la
positivamente com sua capacidade de enxergar e respeitar o outro. No entanto,
resumi-los à bons ou maus personagens é um empobrecimento que Anatomia do Paraíso não permite: ambos
são complexos e ambíguos, desconcertantemente consciêntes de suas próprias
falhas.
A
violência sexual é um tema tão presente na obra quanto a reflexão metalinguística
e, de certa forma, aproximados na medida em que ambos são trabalhados como um
problema enraizado na comunicação. É muito comum que autores esquivem-se de
realmente trabalhar essa questão além de cenas construídas para chocar de forma
barata o leitor ou como uma justificativa clichê para explicar os desvios da
norma dos personagens. O confronto entre Félix e Vanda, no entanto, explora
satisfatoriamente o tema em toda sua profundidade. Ao mesmo tempo, seu desfecho
não é um desfecho solucionador e a autora acerta a mão ao assim fazê-lo,
fugindo de sentimentalismos pouco convincentes.
Satisfatório – em seu sentido pleno e
não como sinônimo de mediano - é um termo adequado para um romance que trabalha
brilhantemente as tensões que constrói internamente sem esquivar-se delas no
final. Como um poema, como o Paraíso
Perdido, a autora dirige magistralmente a intensidade do romance,
reconhecendo o momento certo de deixar as forças criadas correrem livres para
depois serem novamene domadas. Satisfaz-nos mesmo com seu final que, com dois
nascimentos marcantes para seus personagens, fica longe de sugerir uma redenção
total.
A
prosa de Bracher tem um fluxo fluído e firme, e impressiona com uma estrutura
eficiente que permite inclusive respiros de experimentação: o raro uso da
segunda pessoa do singular (para o bom brasileiro, “você”), pequenos trechos de
fluxo de consciência em momentos chave de tensão psicológica na narrativa e uma
erudição impressionante que enriquece o texto ao estabelecer diálogo com outras
obras (e que podem ser encontradas em um excelente índice remissivo que entrega
a experiência de editora de sua autora). A palavra certa no lugar certo,
obsessão de Félix, parece ser compartilhada por sua criadora.
Anatomia do Paraíso é uma realização
impressionante de uma autora madura e com uma visão clara a realizar e, talvez,
uma das mais impressionantes da nossa literatura nos últimos anos.
Nota: ❤❤❤❤❤
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