Título: Eu sou um gato
Autor: Natsume Soseki
Tradutor: Jefferson José Teixeira
Edição: São Paulo: Estação Liberdade, 2008.
Eu sou um gato é a obra de estreia do
modernista Natsume Soseki, professor de inglês por formação que, com o sucesso
da publicação em folhetins no ano de 1905 e posteriormente revisada e publicada
como livro, engata uma carreira literária prolífica. Escreveu também sobre
teoria literária, além de ser um astuto observador da classe intelectual
japonesa, alvo principal de sua narrativa de estreia.
Não
há nada de metáforico no título: o narrador da obra é, de fato, um gato sem
nome que dá sua superioridade aos seres humanos como um fato óbvio e pouco
preocupa-se com fornecer-nos explicações acerca de sua condição de gato escritor. Ao invés disso, durante os
onze capítulos que compõe sua obra, delicia-se em descrever, com minúcias, a
estupidez dos humanos que encontra – em especial, de seu amo, o preguiçoso
Kushami.
Kushami
funciona como uma espécie de alter-ego de Soseki, que tempera sua obra com
referências a autores da época com quem tinha amizade e com experiências suas
que aparecem transfiguradas na vida do professor Kushami. As notas de rodapé
incluídas na edição são essenciais para que a compreensão do jogo feito por
Soseki e a edição da Estação Liberdade supre as necessidades do leitor
ocidental pouco familiarizado com a Literatura japonesa.
O
livro não deve, no entanto, assustar o leitor por pertencer a uma tradição com
que o público brasileiro tem pouca familiaridade. O compromisso com o
modernismo garante terreno comum suficiente para que a obra seja desfrutada sem
problemas e é fácil para o leitor admirar a prosa elegante e certeira de
Soseki, que debocha do discurso intelectual ao colocá-lo como fruto do
intelecto de um gato com tendências filosóficas cujo objeto de estudo são experiências
prosaicas. A ironia também é recurso constante e bem empregado, uma vez que
Kushami e seu círculo de amizades é retratado como patético constantemente pelo
narrador felino.
Kushami
é professor de inglês em uma escola para meninos e, apesar de dedicar-se pouco
ao seu cargo, ser visto com estranheza por seus colegas e ridicularizado por
seus alunos, enxerga-se como um intelectual. Constantemente embarca em
tentativas frustradas de produzir arte, seja escrita ou pintura, apenas para
alcançar resultados medíocres. É casado, possui três filhas e vive de aluguel
em uma casa mal-cuidada. Seu amigo mais próximo é o esteta Meitei. Enquanto
Kushami leva a si mesmo a sério, Meitei é o oposto: bonachão e mentiroso, suas
histórias são sempre absurdas e exageradas. Há, ainda, Kangetsu, jovem
discipulo dos dois que ensaia seguir o mesmo caminho, porém ao invés de
dedicar-se às artes, dedica-se ao estudo de questões inúteis da física – que,
proclama, é o futuro da intelectualidade. Um dos acontecimentos que amarram a
narrativa envolve seu potencial casamento com a filha do próspero comerciante
Kaneda, cuja inescrupulosidade típica dos comerciantes irrita profundamente ao inerte
professor.
Outro
fio que percorre toda a obra é a reflexão acerca da tensão entre o modo de vida
ocidental e oriental, fruto da abertura do Japão durante a era Meiji e também
sentida profundamente pelo autor em sua experiência estudando na Inglaterra. A
valorização da individualidade como expressão máxima típica da cultura
ocidental em muito difere da valorização da comunidade e na busca de um “eu”
sem artíficios como refúgio do oriente: em certo ponto, Soseki ilustra a
questão afirmando que, frente a uma situação desconfortável, a cultura ocidental
manda que busquemos mudá-la, enquanto a oriental manda que mudemos a nós mesmos
para que essa situação deixe de nos incomodar.
Há,
no entanto, qualquer ranço de resistência que é simples fruto da diferença
geracional que o próprio autor parece ter consciência especialmente fácil de
perceber no tratamento das personagens femininos. A elas fica delegado o mundo
das decisões práticas – uma vez que, na cultura japonesa, a economia do lar é
responsabilidade das mulheres – e se são vistas com certo desprezo, retornam o
favor na mesma moeda. Enquanto os personagens insinuam uma culpa ocidental para
as mudanças de temperamento e maior liberdade das mulheres, a total inoperância
masculina exposta no romance sugere uma necessidade de ordem muito mais
próxima, até porque os conhecimentos das mulheres acerca da cultura ocidental é
limitado pela educação recebida nas escolas femininas.
O
ritmo da obra só é prejudicado por, em alguns momentos, estender-se demais em
digressões do narradoe. Estas, no geral, funcionam melhor quando inseridas em
um contexto de ação e observação direta. O trabalho de tradução, revisão e
pesquisa feitos pela Estação Liberdade é louvável e garante que a leitura flua
até mesmo para quem tem pouca familiaridade com a cultura japonesa. Eu sou um gato é um romance
interessante, que experimenta, mas também que preocupa-se em manter uma prosa
instigante em seu olhar curioso acerca das trivialidades que fazem a vida
cotidiana, transformando-a numa expressão interessante do modernismo japonês.
Nota: ❤❤❤❤
Sempre tive curiosidade de conhecer as obras de Natsume Soseki. Eu pensava em começar por Coração, mas como não encontro em lugar algum, vou começar por este mesmo. Ótima resenha!
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