terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Dois Irmãos, Milton Hatoum

Dois Irmãos, Milton Hatoum
Título: Dois Irmãos
Autor: Milton Hatoum
Edição: Companhia das Letras, 2007.


Milton Hatoum é autor brasileiro contemporâneo de impressionante carreira. Manaura de família de origem libanesa, seus romances  Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos e Cinzas do Norte todos foram premiados com o Jabuti de melhor romance. O potencial de Dois Irmãos em outras mídias, que é seu romance mais popular,  têm sido bastante explorado recentemente. Em 2015, a obra foi adaptada em HQ por dois dos principais nomes brasileiros na área, Fábio Moon e Gabriel Bá, e em 2017 ganhou adaptação no formato minisérie para a rede Globo de televisão.
O enredo acompanha a vida dos gêmeos Omar e Yaqub. De família síria, os meninos crescem adorados pela mãe e irmã mais velha e ressentidos pelo pai, que nunca desejou intrusos no seu intenso idílio amoroso com a esposa.  Nosso narrador mantém sua própria identidade em suspensa no ar a maior parte do romance – através das narrativas familiares que reorganiza para o leitor define, também, a si mesmo.  
A ideia de irmãos gêmeos possui um forte poder evocativo no imaginário coletivo ocidental por estar associada a outra ideia, muitas vezes fonte de horror, também explorada pela Literatura: o duplo. Inúmeras narrativas apoiam-se na imagem de personagens cujo destino está inevitavelmente ligado ao outro. Esse "outro" pode ser tanto complementar quanto o seu reverso, mas raramente é fonte de uma relação saudável. A sentença de um duplo “para vida”, que é a condição a qual os gêmeos são relegados por laços sanguíneos, reforça o ar trágico do qual Hatoum faz proveito ao narrar o fim da linhagem produzida por Zana e Halim.
Omar e Yaqub serem duas faces da mesma moeda não significa, no entanto, que um é bom e outro mau. Está nessa compreensão uma das chaves do romance, que explicam também o plano metafórico que Hatoum constrói. Ambos possuem falhas e elas são reflexos umas das outras. Em suas tentativas de diferenciar-se, tornam-se um completo.
    O romance começa com Yaqub retornando da Síria após uma longa temporada em uma pequena aldeia, sem linguagem adequada para expressar-se nem conhecimento das regras de etiqueta. Omar reina absoluto na casa e nas afeições da mãe. Instala-se o conflito: as diferentes formas como os irmãos encaram o fracasso e a rejeição, a impossibilidade de entendimento entre ambos, cujos temperamentos parecem fazer tudo possível para negar as semelhanças físicas. E assim segue o romance inteiro: a vitória de um, intencional ou não, implica na derrota do outro. 
Yaqub parte para São Paulo, onde encontra sucesso nos estudos universitários e, mais tarde, em uma carreira de engenheiro. Omar entrega-se à boêmia manauara, mergulhando cada vez mais fundo na vida noturna e nos lugares remotos da cidade. A tensão entre ambos é, também, uma materialização da tensão entre o Norte e o Sul do país: ambos são igualmente dados aos seus impulsos egoístas, apenas os exploram de maneiras diferentes – enquanto Yaqub lhes dá um verniz de sofisticação, Omar deleita-se com o que há de primitivo neles. Ainda neste panorama, temos a personagem Domingas. De origem pobre, fica órfã e é levada para o cuidado das freiras e, mais tarde, da família dos meninos que, apesar de não serem muito mais velhos que ela, exerce um ambíguo papel maternal em suas vidas. Representa outra faceta do Brasil: a que é explorada e relegada ao “quartinho dos fundos”, parte da família somente quando interessa aos que possuem maior poder.
Outro aspecto interessante explorado pelo autor é o núcleo familiar extremamente fechado, a ponto das relações serem todas contaminadas. A expressão máxima disso é, aqui, as inúmeras menções e mesmo a ocorrência direta de incesto. A obsessão de Zana pelos filhos, em especial Omar, e Rânia pelos irmãos é motivo até de alguns comentários, além da clara desconfiança do narrador – e aqui precisamos nos indagar se sua condição dentro do núcleo familiar não o faz particularmente malicioso na interpretação desses afetos. Halim claramente sente ciúmes de Zana. Essa obsessão leva os personagens a fechar-se e, eventualmente, acaba com sua linhagem.  
Se o clima novelesco ameaça o romance de Hatoum com as ações dramáticas que recheiam seu romance, a maneira com que o autor captura o uso da língua dá autenticidade ao seu romance, fazendo dele, ao mesmo tempo, uma saga familiar com contornos épicos e um relato desses que é passado de boca a boca. O uso do narrador em primeira pessoa, dá folêgo para o romance nos momentos em que há afrouxamento da tensão entre as personagens – sua condição na família e no romance é a mesma: fonte de uma tensão subjacente, por vezes esquecida.
   Dois irmãos consegue, portanto, agradar tanto o leitor mais casual quanto o mais exigente e é um romance interessante de nossa contemporaneidade. A prosa de Hatoum é fluída e sem floreios, mas também é dosada para que o leitor possa entrever possibilidades no que não é dito ou no que somente é insinuado de maneira rica. Suas críticas podem parecer sutis – o autor só abandona qualquer pretexto de sutileza quando trata do período da ditadura militar -  mas conseguem ser contundentes sem cair em um tom professoral. Hatoum consegue a difícil tarefa de produzir um romance denso sem ser hermético.

Nota:♥♥♥♥♥

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