segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Fascismo Eterno, Umberto Eco [tradução] [proibida a reprodução]

Este texto faz parte de um projeto pessoal que pretendo disponibilizar aqui ao longo deste ano. A ideia é, essencialmente, escolher um texto que tenha sido publicado recentemente em veículos que discutem Literatura como o New York Review of Books e o Paris Review e postar suas traduções. Espero conseguir manter certa periodicidade. 

Texto publicado no The New York Review of Books, originalmente publicado em 22 de junho de 1995. Tradução sem fins lucrativos. 


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 Em 1942, com dez anos de idade, eu recebi o Primeio Prêmio Provincial de Jovens Ludi (uma competição “voluntária” compulsória para os jovens italianos fascistas – ou seja, para todos os jovens italianos). Eu usei minha habilidade retórica para elaborar sobre o tema “Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?”. Minha resposta foi sim. Eu era um menino inteligente.
 Eu passei dois dos meus anos de juventude entre SS  (a tropa de proteção), Fascistas, Republicanos e partidários da Resistência atirando uns nos outros e  aprendi como desviar de balas. É um bom exercício.
Em Abril de 1945, os partidários da Resistência tomaram Milão. Dois dias depois, eles chegaram à pequena cidade em que eu vivia na época. Foi um momento de alegria. A praça principal estava repleta de pessoas cantando e balançando bandeiras, clamando em gritos por Mimo, o líder daquela região. Ex-maresciallo do Carabinieri, Mimo juntou-se aos seguidores de General Badoglio, sucessor de Mussolini, e perdeu uma perna durante um dos primeiros confrontos com as forças armadas que restavam do General. Mimo apareceu no balcão da prefeitura pálido, apoiado em sua muleta e tentando acalmar a multidão com uma mão. Eu esperava por seu discurso porque toda minha infância havia sido marcada pelos grandes e históricos discursos de Mussolini, cujas passagens eu memorizava na escola. Silêncio. Mimo falou em uma voz rouca, difícil de ouvir. Ele disse: “Cidadãos, amigos. Depois de tantos sacrifícios dolorosos... estamos aqui. Glória aos que caíram pela liberdade”. E só. Ele voltou para dentro. A plateia gritou, os revolucionários levantaram suas armas e atiraram para o alto festivamente.  Nós, as crianças, tentamos pegar os cartuchos, itens preciosos, mas eu havia aprendido também que a liberdade de expressão significa liberdade retórica. 
Alguns dias depois eu vi os primeiros soldados americanos. Eles eram americanos afrodescendentes. O primeiro yankee que conheci foi um homem negro, Joseph, que me apresentou as maravilhas de Dick Tracy e Li’l Abner. Suas histórias em quadrinhos eram coloridas vibrantemente e cheiravam bem.
Um dos oficiais (Major ou Capitão Muddy) foi convidado na villa da família de duas meninas que eram da minha turma. Eu o conheci no jardim delas, onde algumas jovens, cercando Capitão Muddy, falavam em um francês amador. Capitão Muddy sabia um pouco de francês também. Minha primeira imagem dos americanos libertadores foi, então, – depois de tantas faces pálidas em camisas negras – a de um educado homem negro em um uniforme amarelo e verde dizendo “Oui, merci beaucoup, Madame, moi aussi j’aime le champagne…” Infelizmente não havia champagne, mas Capitão Muddy me deu meu primeiro pedaço de chiclete Wrigley’s Spearmint e eu me pus a mascá-lo o dia todo. À noite, punha o chiclete em um pouco de água em um copo, para que estivesse fresco no dia seguinte. 
Em Maio nós ficamos sabendo que a guerra havia acabado. A paz despertou em mim uma sensação curiosa. Eu havia sido ensinado que um estado de guerra permanente era a condição normal para um jovem italiano. Nos meses que seguiram, eu descobri que a Resistência não era apenas um fenômeno local, mas sim europeu. Eu aprendi palavras novas e empolgantes como réseau, maquis, armée secrète, Rote Kapelle, Warsaw ghetto. Eu vi as primeiras fotografias do Holocausto, descobrindo o significado antes de conhecer a palavra. Eu entendi do que havíamos sido libertados. 
Hoje, em meu país, há pessoas se perguntando se a Resistência teve um impacto militar real sobre o curso da guerra. Para minha geração, esta é uma pergunta irrelevante: nós imediatamente entendemos o significado moral e psicológico da Resistência. Para nós, era motivo de orgulho saber que os europeus nãos esperaram a libertação passivamente. E para os jovens americanos que pagavam com o próprio sangue pela restauração de nossa liberdade, significava algo saber que por trás das linhas de fogo havia europeus pagando por essa dívida adiantadamente. 
Hoje, em meu país, há aqueles dizendo que o mito da Resistência foi uma mentira comunista. É verdade que os comunistas exploraram a Resistência como se ela fosse sua propriedade pessoal, já que eles desempenharam um papel essencial nela; mas eu lembro dos partidários com bandanas de cores diferentes. Grudado no rádio, passei minhas noites – a janela fechada, a escuridão fazendo o pequeno espaço do aparelho um halo luminoso – ouvindo as mensagens enviadas pelo Voice of London para os partidários. Elas eram misteriosas e poéticas ao mesmo tempo (O sol também se levanta, As rosas irão florescer) e a maioria delas eram “messaggi per la Franchi.”  Alguém confidenciou-me que Franchi era o líder mais poderoso de uma rede clandestina no noroeste da Itália, um homem de coragem legendária. Franchi tornou-se meu herói. Franchi (cujo nome real era Edgardo Sogno) foi um monarquista, tão anti-Comunista que após a guerra juntou-se a grupos de direita e foi condenado por colaborar em um projeto para um golpe de estado reacionário. Quem se importa? Sogno ainda permanece o herói dos sonhos da minha infância. Liberação era um feito comum à pessoas de cores diferentes. 
Hoje, em meu país, há aqueles que dizem que a Guerra pela Liberação da Itália foi um período trágico de divisão e que todos precisamos de uma reconciliação nacional. A memória desses terríveis anos deve ser  reprimida, refoulée, verdrängt. Mas Verdrängung  causa neurose. Se a reconciliação significa compaixão e respeito por todos que lutaram de boa fé  em suas próprias guerras, perdoar não significa esquecer. Eu posso até aceitar que Eichmannn sinceramente acredite em sua missão, mas não posso dizer “Ok, volte e faça novamente”. Nós estamos aqui para lembrar e solenemente dizer que “eles” não devem fazê-lo novamente.  
Mas quem são eles?
Se pensamos nos governos totalitários que governaram a Europa antes da Segunda Guerra Mundial podemos facilmente dizer que seria difícil que eles reaparecessem na mesma forma em uma circunstância histórica diferente. Se o Fascimo de Mussolini era baseado na ideia de um líder carismático, de corporativismo, de um Destino Imperial Romano utópico, em um desejo imperialista de conquistar novos territórios, em um nacionalismo exacerbado, no ideal de uma nação de camisas negras, na rejeição do parlamento democrático, no anti-semitismo, então não tenho dificuldade em reconhecer que a Alleanza Nazionale da Itália - nascida do partido Fascista pós guerra, o MSI (Movimento Sociale Italiano), e certamente um partido de direita - tem agora pouco em comum com o velho fascismo. Na mesma linha de raciocínio, mesmo que eu esteja muito preocupado com os vários movimentos parecidos com o Nazismo que surgiram em certos lugares da Europa, incluindo a Russia, eu não acredito que o Nazismo, em sua forma original, está prestes a reaparecer como um movimento nacional. 
Ainda assim, mesmo que os regimes políticos possam ser destituídos, e as ideologias possam ser criticadas e abandonadas, por trás de um regime e suas ideologias há sempre uma forma de pensar e sentir, um grupo de hábitos culturais, de instintos e impulsos incomensuráveis. Há ainda algum outro fantasma assombrando a Europa (para não falar de outras partes do mundo)?
Ionesco disse certa vez que “apenas as palavras contam e o resto é apenas conversa”. Hábitos linguísticos são frequentemente importante sintomas de sentimentos subjacentes. Assim, vale a pena perguntar por que não somente a Resistência, mas também a Segunda Guerra Mundial foram definidas pelo mundo como uma luta contra o Fascismo. Se você reler Por quem os sinos dobram, de Hemingway, descobrirá que Robert Jordan identifica seus inimigos com fascistas, mesmo quando pensa nos falangistas espanhóis. E para FDR, “A vitória do povo americano e de seus aliados será a vitória contra o fascismo e a morte do depotismo que ele representa”. 
Durante a Segunda Guerra Mundia, os americanos que tomaram parte na Guerra da Espanha eram chamados de “anti-fascistas prematuros” – lutar contra Hitler, nos anos 40, era o dever moral de todo bom americano, mas lutar contra Franco nos anos 30 despertava desconfiança por ser feito principalmente de comunistas e outros esquerdistas... Por que a expressão porco fascista foi usada pelos americanos radicais trinta anos depois para se referir à policiais que não aprovavam seu hábito de fumar? Por que nao diziam porco Cagoulard, porco Falangista, porco Ustashe, porco Quisling, porco Nazista?
Mein Kampf é um manifesto de um programa político completo. O Nazismo tinha a teoria racista do povo Ariano escolhido, uma noção precisa do que é arte deturpada , entartete Kunst, a filosofia do desejo de acumular poder e do Ubermensch. O Nazismo era decididamente anti-cristão e neo-pagão, enquanto o Materialismo Dialético de Stalin (sua versão oficial do Marxismo Soviético) era claramente materialística e atéia. Se o totalitarismo significa um regime que subordina cada ato do indivíduo ao estado e à sua ideologia, então tanto Nazismo quanto Stalinismo eram regimes totalitários. 
O Fascismo italiano foi certamente uma ditadura, mas não foi totalmente autoritário - não por ser mais leve, mas por uma fraqueza filosófica em sua ideologia. Contrário à opinião popular, o Fascismo italiano não teve uma filosofia em especial. O artigo sobre Fascismo assinado por Mussolini na Enciclopédia Trecanni foi inspirado por Giovanni Gentile, mas refletia a noção hegeliana tardia do Absoluto e do Estado Ético que nunca foram realizadas por Mussolini. Mussolini não possuía nenhuma filosofia: só possuía retórica. Ele foi  militante ateu quando jovem e mais tarde assinou a Convenção com a Igreja e recebeu os bispos que abençoaram as flâmulas fascistas. Em sua época anti-clerical, de acordo com certa lenda, ele pediu a Deus que, para provar sua existência, o matasse imediatamente. Mais tarde, Mussolini sempre citava Deus em seus discursos e não se importava de ser chamado de Homem da Providência Divina. 
O fascismo italiano foi a primeira ditadura de direita a tomar um país europeu e movimentos similares encontraram no regime de Mussolini um arquétipo. O fascismo italiano foi o primeiro a estabelecer uma liturgia militar, um folclore, até mesmo uma maneira de se vestir – muito mais influente, com suas camisas negras, que Armani, Benetton ou Versace jamais serão. Foi somente nos anos 30 que movimentos facistas apareceram com Mosley, na Grã-Bretanha e na Latvia, Estonia, Lithuania, Polônia, Hungria, Romania, Bulgária, Grécia, Ioguslávia, Espanha, Portugal, Noruega e até na América do Sul. Foi o fascismo italiano que convenceu muitos líderes europeus liberais que um novo regime daria conta de uma reforma social interessante e se provava uma alternativa razoavelmente interessante a ameaça comunista.
Ainda assim, pioneirismo histórico não me parece razão sufiente para explicar porque a palavra fascismo tornou-se sinédoque, ou seja, uma palavra que pode ser utilizada por diferentes movimentos totalitários. Isto não é porque o Fascismo contém em si, em seu estado essencial, todos os elementos que mais tarde formariam o Estado Totalitárista. Ao contrário, o Fascismo não possui essência. Fascismo é um totalitarismo vago, uma colagem de diferentes ideias filosóficas e políticas, uma colméia de contradições. Pode-se conceber um estado totalitário que combine monarquia e revolução, o Exército real com a milícia pessoal de Mussolini, os privilégios da Igreja com a educação estatal que exalta a violência, controle absoluto estatal e mercado livre? O Partido Fascista nasceu gabando trazer uma nova ordem revolucionária, mas foi financiado pelos mais conservadores dentre os capitalistas que esperavam uma contra-revolução. No seu início, foi republicano. Mas sobreviveu por vinte anos proclamando lealdade à família real, enquanto o Duque (o indisputado Líder Máximo) estava de braços dados com o Rei, para quem ofereceu o título de Emperador. Mas quando o Rei despediu Mussolini em 1943, o partido reapareceu dois meses depois com o apoio alemão, sob o emblema de uma república “social”, reciclando seu roteiro revolucionário, agora enriquecido com ideias jacobinas.
Havia apenas um estilo arquitetônico nazista e um estilo artístico nazista. Se o arquiteto nazista era Albert Speer, não havia mais espaço para Mies van der Rohe. Igualmente, sob o domínio de Stalin, se Lamarck era certo não haver espaço para Darwin. Na Itália certamente havia arquitetos fascistas, mas próximo de seus pseudo-Coliseus havia vários novos prédios inspirados no racionalismo moderno de Gropius.
Não havia um Zhdanov fascista estabelecendo os padrões culturais. Na Itália havia dois prêmios importantes. O prêmio Cremona era controlado por Roberto Farinacci, fanático e ignorante fascista que encorajava arte propagandista. (Lembro-me de pinturas com títulos como Ouvindo o discurso do Duque pelo rádio ou Estados da Mente criados pelo Fascismo). O prêmio Bergamo era patrocinado por Giuseppe Bottai, erudito e razoávelmente tolerante fascista que protegia ao mesmo tempo o conceito da arte pela arte e as diversas formas de arte avant-gard que eram consideradas corruptas e de tendência comunista na Alemanha. 
O poeta nacional era D’Annunzio, um dândi que na Alemanha ou Rússia teria sido mandado para o paredão. Ele foi considerado como o bardo do regime graças ao seu nacionalismo e culto ao heroísmo – que eram, na verdade, abundantemente misturados com influências do fin de siècle francês decadente. 
Examinemos o Futurismo. Pode-se pensar que há possibilidade de considerá-lo uma manifestação do entartete Kunst, junto com o Expressionismo, Cubismo e Surrealismo. Mas os primeiros futuristas italianos eram nacionalistas e favoreciam a participação italiana na Primeira Guerra Mundial por razoões estéticas; celebravam a velocidade, violência e o risco, o que conectava-se de certa forma com o culto fascista da juventude. Enquanto o Fascismo se identificava com o Império Romano e redescobria tradições rurais, Marinetti (que proclamava que o carro era mais bonito que a Vitória de Samotrácia e queria matar até mesmo a luz da lua) nunca foi oficialmente indicado como membro da Academia Italiana, que grandemente respeitava a luz da lua. 
Muitos dos partidários do futuro e intelectuais futuristas do Partido Comunista foram educados pela GUF, a associação fascistas de estudantes universitários, que supostamente era o berço da nova cultura fascista. Esses clubes tornaram-se uma espécia de caldeirão intelectual onde novas ideias circulavam sem nenhum controle ideológico real. Não que os homens do partido fossem tolerantes às novas formas radicais de pensar, mas poucos eram equipados intelectualmente para controlá-las. 
Durante esses vinte anos, a poesia de Montale e de outros escritores associados ao grupo chamado de Ermetici foi a reação ao estilo explosivo do regime e esses poetas tinham permissão para desenvolver seus protestos literários de dentro do que parecia uma torre de marfim. O clima dos poetas do grupo Ermetici era exatamente oposto ao culto fascista do otimismo e heroísmo. O regime tolerava sua discordância óbvia, mas socialmente imperceptível, simplesmente por não prestar atenção a uma linguagem tão arcaíca. 
Tudo isso não significa que o Fascismo italiano era tolerante. Gramsci foi mantido na prisão até sua morte; os líderes da oposição Giacomo Matteotti e os irmãos Rosselli foram assassinados; a liberdade de imprensa foi exterminada, os sindicatos foram desmontados e os que se opunham politicamente ao governo foram confinados em ilhas distantes. O poder legislativo tornou-se mera ficção e o poder executivo (que controlava o judiciário e a mídia) criava novas leis diretamente, entre elas a que pretendia a preservação da raça (o gesto formal dos italianos em apoio ao que se tornaria o Holocausto).
A visão contraditória que descrevo não era o resultado da tolerância, mas sim de um desconcerto político e ideológico. Mas era um desconcerto rígido, uma confusão estruturada. O Fascismo era filosoficamente incongruente, mas emocionalmente prendia-se firmemente à fundamentos arquetípicos.
Chegamos, então, a meu segundo argumento. Havia apenas um Nazismo. Nós não podemos rotular o hyper-católico Falangismo espanhol de Nazismo, já que o Nazismo é fundamentalmente pagão, politeísta e anti-Cristão. Mas o Fascismo pode assumir várias formas e seu nome não muda. A noção de fascismo não é diferente da noção de jogo de Wittgenstein. Um jogo pode ser competitivo ou não, demandar habilidades especiais ou não, pode envolver dinheiro ou não. Jogos são atividades diferentes que apresentam alguma “semelhança familiar”, como afirma Wittgenstein. Considere a sequência:

1 2 3 4
abc bcd cde def

Suponha que há uma série de grupos políticos em que um grupo é caracterizado pelas particularidades abc, grupo dois por bcd e assim em diante. Grupo dois é similar ao grupo um por terem duas características em comum; pelo mesmo motivo três é similar a dois e quatro é similar a três. Note que três  também apresenta uma característica em comum com um (eles apresentam c). O mais curioso caso é apresentado por quatro, obviamente similar a três e dois, mas sem nada em comum a um. No entanto, devido à série ininterrupta de similaridades decrescentes entre um e quatro, há ainda, por uma espécie de ilusão transitória, uma semelhança familiar entre quatro e um.  
O Fascismo tornou-se um termo guarda-chuva porque podemos eliminar do regime uma ou outra característica e ele ainda será reconhecível como Fascismo. Tire o imperialismo e você ainda terá Franco e Salazar. Tire o colonialismo e você terá o fascismo Balcã dos Ustashes. Adicione ao Fascismo italiano um anti-capitalismo radical (que nunca interessou muito a Mussolini) e você terá Ezra Pound. Adicione um culto à mitologia celta e ao mistiscismo em torno do Santo Graal (completamente alheio ao Fascismo oficial) e você terá um dos mais respeitados gurus fascistas, Julius Evola.
Apesar da sua indefinição, acredito ser possível determinar uma lista de características que são típicas do que eu chamaria de Ur-Fascismo, ou Fascismo Eterno. Essas características não podem ser organizadas em um sistema; muitas contradizem umas às outras e são típicas de outras formas de depotismo ou fanatismo. Mas é suficiente que uma delas esteja presente para que o fascismo se coagule em torno dela. 

1. A primeira característica do Fascismo eterno é o culto à tradição. O Tradicionalismo é, obviamente, muito mais antigo que o fascismo. Não só é típico do pensamento católico contra-revolucionário pós Revolução Francesa, mas nascido da Era Helenística como uma reação ao clássico racionalismo grego. No mediterrâneo, pessoas de diferentes religiões (a maioria indulgentemente aceitas pelo Panteão Romano) começaram a sonhar com uma revelação recebida no despertar da humanidade. Essa revelação, de acordo com o misticismo tradicionalista, permaneceu escondida sob o véu de outras línguas – nos hieroglifos egípcios, nas runas celtas, em manuscritos de desconhecidas religiões asiáticas.  
Essa nova cultura deve ser sincrética. Sincretismo não é  só, como o dicionário define, “ a combinação de diferentes crenças e práticas” -  é uma combinação que tolera contradições. Cada uma dessas mensagens originais contém alguma sabedoria e quando afirmam coisas diferentes ou incompatíveis é só porque estão aludindo, alegoricamente, à mesma verdade primitiva.  
Como consequência, não há avanço nos conhecimentos. A verdade já foi descoberta de uma vez por todas e nós só podemos interpretar sua mensagem obscura.
Precisa-se somente olhar o programa de cada movimento fascista para descobrir vários pensadores tradicionalistas. O nazismo-gnosticismo era nutrido por elementos tradicionalistas, sincretistas e ocultistas. O mais influente teórico, fonte de teorias da nova direita italiana, Julius Evola, fundiu o Santo Graal com O Protocolo dos Sábios de Sião, alquemia com o Sagrado Romano e o Império Germânico. O simples fato de que a direita italiana, para demonstrar sua mente aberda, recentemente expandiu seu programa para incluir obras de De Maistre, Guenon e Gramsci, é prova do sincretismo. 
Se você passar os olhos pelas estantes que, nas livrarias americanas, estão classificadas como New Age, encontrará até mesmo Santo Agostinho, que até onde sei, não foi um fascista. Mas combinar Santo Agostinho e Stonehenge – isso é um sinal de fascismo.
2. Tradicionalismo implica em uma rejeição do modernismo. Tanto fascistas quanto Nazistas adoravam a tecnologia, enquanto pensadores tradicionalistas rejeitavam-na como uma negação dos valores espirituais tradicionais. No entanto, mesmo que os Nazistas tivessem orgulho de seus feitos industriais, seu elogio ao modernismo era somente a superfície de uma ideologia baseada em Sangue e Terra (Blut und Boden). A rejeição do mundo moderno era disfarçada de resposta ao modo capitalista de vida, mas preocupava-se principalmente com a rejeição do Espírito de 1789 (e de 1776, claro). O Iluminismo, a Era da Razão, são vistos como o marco inicial da depravação moderna. Nesse sentido, o Fascismo Eterno pode ser definido como um irracionalismo. 
3. O irracionalismo também depende do culto da ação pela ação. Como a ação é bela em si mesma, precisa ser tomada antes, ou sem, qualquer reflexão. Pensar é uma forma de emasculação. Logo, a cultura é suspeita na medida em que se identifica com atitudes críticas. Desconfiança do mundo intelectual sempre foi um sintoma do Fascismo Eterno, da suposta afirmação de Goering (“Quando ouço falar de cultura, pego minha arma”) ao frequente uso de expressões como “intelectuais degenerados”, “cabeça de vento”, “esnobes afetados”, “universidades são um ninho de comunistas”. Os intelectuais oficiais do Fascismo ocupavam-se em atacar a cultura moderna e a inteligência liberal por ter traído os valores tradicionais.
4. Não há fé sincrética que possa sobreviver à análise crítica. O espírito crítico faz distinções, e distinguir é um sinal do moderno. Na cultura moderna, a comunidade científica aprecia o desentendimento como uma forma de melhorar o conhecimento. Para o Fascismo Eterno, desentendimento é traição.
5. Além disso, o desentendimento é sinal de diversidade. O Fascismo Eterno cresce e busca o consenso explorando e exarcebando o medo da diferença natural. O apelo do fascista ou do fascista prematuro é uma apelo contra o invasor. Assim, o Fascismo Eterno é racista por definição. 
6. Fascismo eterno é derivado do indivíduo ou da frustração social. É por isso que uma das características mais comuns do Fascismo histórico seja o apelo às frustrações da classe média, uma classe social que sofre de crise econômica ou sente-se politicamente humilhada e está assustada com a pressão vindo de outras classes sociais mais baixas. Em nossos tempos, quando os antigos proletários tornam-se burgueses mesquinhos (e os pobres são geralmente excluídos do cenário político), o fascismo de amanhã encontrará sua audiência na maioria.
7. Para pessoas que sentem-se privadas de uma identidade social clara, o Fascismo Eterno diz que seu único privilégio é o mais comum: terem nascido no mesmo país. Essa é a origem do nacionalismo. Além disso, os únicos que podem prover uma identidade para a nação são os inimigos. Assim, na raiz da psicologia por trás do Fascismo Eterno há uma obsessão com estrategemas, possivelmente  internacionais. Os seguidores devem sentir-se cercados. O jeito mais fácil de resolver a estrategema internacional é apelar para a xenofobia. Mas a estrategema também precisa vir de dentro: os judeus são, usualmente, os melhores alvos por terem a vantagem de estar ao mesmo tempo dentro e fora. Nos EUA, a instância mais proeminente de obsessão com estratagemas pode ser encontrada em A nova ordem mundial, de Pat Robertson, mas, como vimos recentemente, há muitas outras.
8. Os seguidores devem sentir-se humilhados pela ostentação de fortuna e força de seus inimigos. Quando eu era um menino, fui ensinado a pensar nos ingleses como as pessoas que tinham cinco refeições. Eles comiam mais frequentemente que os pobres, mas sóbrios italianos. Judeus eram ricos e ajudavam uns aos outros por uma rede secreta de ajuda mútua. No entanto, os seguidores precisam esta convencidos que eles podem reprimir seus inimigos. Assim, por uma contínua mudança no foco retórico, os inimigos são ao mesmo tempo muito fortes e muito fracos. Governos fascistas esão condenados a perder guerras por serem inerentemente incapazes de avaliar objetivamente a força do inimigo.
9. Para o Fascismo eterno não há uma luta pela vida; a vida é vivida pela luta. Assim, o pacifismo é um tráfico com o inimigo. Ele é ruim porque a vida é um estado de guerra permanente. Isso resulta em uma obsessão com o dia final. Já que os inimigos devem ser derrotados, deve haver uma batalha final, após a qual o movimento terá controle do mundo. Mas essa “resolução final” implica em uma era de paz, uma Era Dourada, que contradiz o princípio de estado de guerra permanente. Nenhum líder fascista obteve sucesso em resolver esta contradição.
10. O elitismo é característica típica de qualquer ideologia reacionária, uma vez que é fundamentalmente aristocrático e a aristocracia e o militarismo elitistas implicam cruelmente em um desprezo pelo fraco. O fascismo eterno só pode advogar por um elitismo popular. Cada cidadão pertence ao melhor grupo de pessoas do mundo, os membros do partido são os melhores entre os cidadãos, cada cidadão pode (ou deve) tornar-se um membro do partido. Mas não podem haver patrícios sem plebeus. De fato, o líder, sabendo que seu poder não lhe foi delegado democraticamente, mas conquistado pela força, também sabe que sua força baseia-se na fraqueza das massas; elas são tão fracas quando necessário e desejado pelo governante. Como cada grupo é organizado hierarquicamente (de acordo com um modelo militar), cada subordinado ao líder despreza seus próprios subordinados, que por sua vez desprezam seus inferiores. Isso reforça o senso de superioridade das massas.
11. Nessa perspectiva, todos são criados para tornarem-se heróis. Em toda mitologia, o herói é alguém excepcional, mas na ideologia fascista, o heroísmo é a norma. Esse culto do heroísmo é estreitamente ligado ao culto da morte. Não é por acaso que o lema dos Falangistas espanhóis era “Viva la muerte”. Em sociedades não-fascistas, as massas entendem a morte como algo desagradável, mas que deve ser encarado com dignidade; seguidores do Fascismo são ensinados que ela é o caminho doloroso para uma alegria sobrenatural. Por isso, o fascista deseja a morte heróica, propagandeada como a melhor recompensa por uma vida heroíca. O herói fascista está impaciente para morrer. Em sua impaciência, ele frequentemente envia outras pessoas para a morte.
12. Como tanto um estado permanente de guerra e de heroísmo são difíceis de manter, o Fascismo transfere seu desejo de poder para a esfera sexual. Essa é a origem do machismo (que implica em um desdém pelas mulheres e intolerância e condenação de hábitos sexuais fora do padrão, da castidade à homossexualidade). Como a manutenção deste estado é difícil também nessa esfera,  o herói fascista tende a usar armas – e fazê-lo torna essa substituição um exercício fálico. 
13. O Fascismo Eterno baseia-se em um populismo seletivo, pode-se até dizer um populismo qualitativo. Na democracia, o cidadão possui direitos individuais, mas os cidadãos como um todo possuem um impacto político quantitativo – cada um deve seguir as decisões da maioria. Para o fascista, no entanto, indivíduos não possuem direitos individuais e o povo é concebido como a qualidade, uma entidade monolítica expressando um desejo comum. Como grandes quantidades de seres humanos não possuem um desejo comum, o líder finge ser seu intérprete. Os cidadãos, que perderam seu poder de delegar, agora só são chamados para exercer o papel enquanto ppovo. Assim, o povo é uma figura teatral. Para observarmos um bom exemplo do populismo qualitativo não precisamos mais da Piazza Venezia em Roma ou do Estádio Nuremberg. Há no nosso horizonte um populismo  da TV ou da internet, em que cada resposta emocional de um grupo selecionada é apresentada e aceita como a Voz do Povo.
Por causa de seu populismo qualitativo, o Fascismo Eterno deve ser contra os parlamentos corruptos do governo. Uma das primeiras coisas ditas por Mussolini ao parlamento italiano foi “Eu poderia ter transformado este lugar surdo e sombrio em um alojamento para meus centuriões”  - “centuriões” sendo uma subdivisão da tradional Legião Romana. De fato, ele imediatamente proveu melhor moradia para seus seguidores, mas pouco depois liquidou o parlamento. Quando um político duvida da legitimidade do parlamento porque ele não representa mais a Voz do Povo, pode-se sentir o cheiro do Fascismo Eterno. 
14. O Fascismo Eterno fala Novilíngia. Novilíngua foi inventada por Orwell, em 1984, como a língua oficial de Ingsoc, Inglês Socialista. Mas os elementos do Fascismo Eterno são comuns a diferentes formas de ditaduras. Todos as cartilhas Nazistas ou Fascistas usavam um vocabulário empobrecido e uma sintaxe elementar para limitar os instrumentos de pensamento complexo e crítica. Mas nós precisamos estar prontos para identificar outros tipos de Novilínguas, mesmo que eles tomem a forma aparentemente inocente de um programa popular de televisão.
Na manhã de 27 de julho de 1943, soube pelas notícias do rádio que o Fascismo havia entrado em colapso e que Mussolini estava preso. Quando minha mãe mandou que eu comprasse o jornal, vi que havia jornais na banca mais próxima com diferentes títulos. Vi, ainda, após ler os títulos, que cada jornal dizia coisas diferentes. Comprei um deles ao acaso e li a mensagem na primeira página, assinada por cinco ou seis partidos políticos – entre eles Democrazia Cristiana, o Partido Comunista, o Partido Socialista, o Partito d’Azione e o Partido Liberal.

         Até então, eu acreditava que havia somente um único partido em cada país e que o da Itália era o Partido Nacional Fascista. Agora, descobria que em meu país diversos partidos podiam existir ao mesmo tempo. Como era um menino inteligente, imediatamente percebi que tantos partidos não poderiam ter surgido da noite para o dia e que deviam ter existido por algum tempo como organizações clandestinas.
       A mensagem na página da frente celebrava o fim da ditadura e o retorno da liberdade: liberdade de expressão, de imprensa, política. Estas palavras, “liberdade”, “ditadura” – eu as lia agora pela primeira vez em minha vida. Eu renascia como um homem ocidental livre graças a essas palavras. 
     Nós precisamos nos manter alerta, para que o signficado dessas palavras não seja esquecido novamente. O Fascismo ainda está entre nós, às vezes no trivial. Seria muito mais fácil, para nós, se reaparecesse no cenário mundial alguém dizendo “Eu quero reabrir Auschwitz, Quero a volta dos Camisa Negras marchando nas praças italianas”. A vida não é tão simples. O Fascismo Eterno pode voltar sob o mais inocente dos disfarces. Nosso dever é descobri-lo e apontar nossos dedos para suas novas formas – todo dia, em todo lugar do mundo. O que Franklin Roosevelt disse, em 2 de novembro de 1983, merece ser lembrado: “Eu arrisco a ousada afirmação de que se a democracia americana deixar de mover-se adiante como uma força vida, buscando dia e noite meios pacíficos de melhorar a vida de nossos cidadãos, o fascismo crescerá em nossa terra”. Liberdade e libertação são uma tarefa sem fim.   

Encerro com um poema de Franco Fortini:

Sulla spalletta del ponte
Le teste degli impiccati
Nell’acqua della fonte
La bava degli impiccati.
Sul lastrico del mercato
Le unghie dei fucilati
Sull’erba secca del prato
I denti dei fucilati.
Mordere l’aria mordere i sassi
La nostra carne non è più d’uomini
Mordere l’aria mordere i sassi
Il nostro cuore non è più d’uomini.
Ma noi s’è letto negli occhi dei morti
E sulla terra faremo libertà
Ma l’hanno stretta i pugni dei morti
La giustizia che si farà.
* * *

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