sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Conversa de leitor: sobre desafios, metas e expectativas literárias para 2014

            Não gosto de estabelecer metas de leitura ou de ver o que leio como um número em uma lista. Um dos motivos principais para a existência desse blog foi um desejo de aproveitar melhor minhas leituras: escrever criticamente sobre o que leio fazendo com que eu articule melhor as impressões que tenho e também que eu aprofunde a leitura, mas não criar uma obrigação numérica. Porém, conforme o tempo começa a ficar mais apertado, começo a entender a motivação por trás delas.
            Lembro-me que o período de leitura mais intenso que tive foi entre os meus treze e dezesseis anos. Grande parte do que li até hoje foi lido durante esses anos; uma combinação de paixão recente, biblioteca particular de casa aguardando para ser desbravada e bastante tempo livre fez com que um livro por semana fosse o mínimo. Ao mesmo tempo em que li muito, também acabei por ler muitas coisas que não estava exatamente preparada para absorver – por exemplo, li Thomas Mann, mas não me pergunte nada sobre porque só lembro que foi bastante difícil. O que me impelia era o desafio, a vontade de ler tudo que podia. Hoje vejo que minha compreensão de muitos desses livros foi limitada pela inexperiência. Não me arrependo, pois resultou em uma formação como leitora incrivelmente completa e que me preparou bastante, além de ter me tornado uma leitora não só voraz, mas também rápida... mas sinto que algumas releituras serão necessárias.
            Se a adolescência foi um momento feliz para as minhas leituras, deparei-me com uma queda considerável depois que entrei na faculdade. Decidi prestar Letras impelida pelo amor que sentia pela Literatura e relativa facilidade com a Gramática e línguas estrangeiras. Ler tornou-se uma obrigação – que me dava prazer, mas era inescapável – e por isso deixou de ser a minha principal fonte de lazer.
            Quando terminei a Faculdade senti-me um tanto perdida e tive que recriar em mim o hábito da leitura que agora não é mais um simples divertimento, embora seja grande fonte de prazer. Estou em um ótimo momento como leitora e tenho grande vontade de reler e ler muitas obras. Por isso, hesitantemente, decidi traçar algumas metas de leitura. Não são rígidas, mas servem para me lembrar de que dedicar um tempinho aos livros sempre faz com que eu me sinta renovada e que é uma das maneiras mais eficientes que descobri até hoje de cuidar de mim mesma.
1. Colocando em números: pretendo ler no mínimo 45 livros. Contei um livro por semana e depois considerei a possibilidade de leituras mais demoradas para chegar em um número razoável. É super alcançável e estou confiante.
2.  Pelo menos 8 deverão ser livros de poesia. Mas se conseguir mais, excelente. Para alguém que ama poesia, leio muito pouco.
3.  Escrever sobre minhas leituras, especialmente as mais densas. Para esse propósito tenho, além do blog, um caderninho de anotações.
4.  Ler no mínimo um livro em inglês por bimestre, preferencialmente um livro com uma linguagem mais trabalhada. Não trabalho com o inglês e tenho que praticar sempre para não esquecer. A linguagem informal da internet não basta – praticar com livros mais “puxados” é importante!
5.  Continuar investindo na biblioteca pessoal. Um dos meus sonhos é um dia ter um cômodo dedicado só aos meus livros. Por enquanto, vou construindo meu acervo pessoal. Pretendo seguir o ritmo atual – sem exageros, mas com aquisições constantes. Aproveitar promoções é a chave para isso.
6.  Começar alguma coleção de mangá. Eu gosto bastante de ler mangás, apesar de encontrar títulos que me agradem com certa dificuldade. Em 2013 fiz três coleções e comprei um volume único. Manter esse número seria o ideal.
7.  Não deixar livros intimidarem pelo tamanho. Como não consigo ler mais de um livro ao mesmo tempo, sempre hesito antes de assumir compromisso com leituras mais demoradas... mas acabo adiando o momento de ler coisas que realmente gosto. Espero que isso aconteça menos em 2014!
8.  Ler autores contemporâneos. Tenho uma tendência a ler poucos autores que ainda estão produzindo – trocando em miúdos, leio muitos autores mortos ou que não escrevem mais   e isso sempre me frustra por não poder esperar lançamentos e perder a oportunidade de desfrutar dos prazeres de poder manter-se atualizado sobre um autor querido. Em 2013 conheci a Catherynne M. Valente, que entrou pros meus favoritos, e percebi como isso é gostoso.


São metas bem simples e espero que consiga alcançá-las. Vou dividindo os resultados por aqui, em forma de resenha, e pretendo usar também o skoob para isso. Fica o convite para discutirmos e refletirmos sobre metas de leitura e quão válidas elas podem ser. 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Mrs Dalloway, Virginia Woolf

Título: Mrs Dalloway
Autor: Virginia Woolf
Tradução: Claudio Alves Marcondes
Editora: Cosac Naify
Edição: 2ª edição, São Paulo, 2013

         Virginia Woolf é uma das mais importantes escritoras do Modernismo e sua obra uma das mais relevantes produções literárias do século XX. Entre romances, uma peça de teatro, diários, contos e ensaios, Mrs Dalloway recebe destaque como uma de suas principais realizações.
            O romance, que conta com uma das frases iniciais mais famosas da Literatura – “Mrs Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores” –, é uma obra densa, que impressiona pela precisão técnica de sua realização. Todo o enredo se passa durante um dia de junho de 1932 em que Mrs Dalloway está oferecendo uma importante festa para a alta sociedade londrina. Clarissa é uma mulher relativamente limitada: não possui habilidades das quais se orgulha, como tocar piano ou mesmo ser uma grande leitora, mas considera-se uma excelente anfitriã. E, como boa anfitriã, é ela que nos guia pela narrativa, permitindo que conheçamos os personagens que gravitam em sua órbita – Peter Walsh, sua paixão da adolescência e um dos personagens mais destacados, obcecado com a juventude e com a própria Clarissa; Sally Seton, uma amiga por quem Clarissa nutria sentimentos de tom romântico e que é lembrada como uma jovem cheia de vida e rebeldia, mas acaba se tornando uma dona de casa; Richard Dalloway, seu prático, sensato, mas também distante marido e Elizabeth, a filha do casal com inclinações políticas instiladas por sua tutora, a rígida e religiosa Miss Killman. Em paralelo também somos apresentados ao veterano da Primeira Guerra Mundial que sofre sequelas psicológicas, Septimus Warren Smith e sua mulher, a jovem e estrangeira Lucrezia.
 Septimus é um dos personagens mais importantes da narrativa, porém em momento algum existe um encontro direto entre ele e Clarissa. O momento em que ela toma consciência de sua existência é, no entanto, um dos mais pungentes da narrativa e nos permite entrever um mundo privado de Mrs Dalloway, que ela tanto se esforça para reprimir, quase se libertando... mas sendo, por fim, aquietado – pelo menos até onde o brusco encerramento permite saber.
Os recursos narrativos são inovações interessantes, trabalhando uma multiplicidade de personagens que ora são examinados com certo afastamento por um narrador onisciente, ora são expostos criticamente e por vezes tem seus pensamentos internos apresentados ao leitor por meio do uso de fluxo de consciência. Essa mudança de estratégia narrativa é feita sem nenhuma indicação ao leitor e exige atenção, mas também se apresenta com espantosa naturalidade. As personagens constantemente refletem umas sobre as outras, permitindo ao leitor uma interessante sensação de que tentativas de estabelecer uma unidade, descrição perfeita são sempre falhas, mas ao mesmo tempo inevitáveis. A sensação de que algo escapa é uma constante.
Também é constante o uso de flashbacks, que formam uma quase segunda narrativa da juventude das personagens, mesmo que extremamente fragmentada por ser exposta episodicamente. Existe uma forte oposição entre o campo e a cidade e Londres surge como uma entidade importante em Mrs Dalloway: é lugar que apresenta infinita possibilidade de encontros e que funciona como uma âncora, um marco da realidade para um livro que coloca em primeiro plano a subjetividade de suas personagens.
O uso brilhante da técnica combinado com a riqueza de temas e leituras possíveis fazem com que Mrs Dalloway seja um livro que exige muito de seu leitor – e, acima de tudo, uma vez que sua pluralidade é tão complexa e profunda, exige de seu leitor um retorno para a obra com a promessa de que uma simples leitura é insuficiente para compreender o intrincado universo construído por Virginia Woolf.

Nota: ♥♥♥♥♥ 

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Book Haul - Novembro

     Olá, pessoal. Novembro finalmente acabou e está na hora de mostrar as comprinhas desse mês. Além de ter sido um mês agitado, foi também o mês em que passei a oficialmente não ter mais espaço para livros. Os coitados estão empilhados onde dá. Uma estante pros bichinhos passou a ser uma necessidade! Vamos ver se consigo organizá-los antes de 2014 chegar. 'Bora ver o que entrou na minha coleção esse mês?
Saiu o segundo volume de Madoka Mágica! Gostei bastante do primeiro, é bem fofinho e lembra muito os animes que eu mais gostava de assistir quando era criança. ♥ 

 
    

     Ahhhh, esses livros! No começo do mês os livros da Editora Globo entraram em uma promoção muito bacana e eu aproveitei para comprar alguns. Desde meu primeiro contato, morri de vontade de ler Hilda Hilst mais a fundo e aproveitei para trazer alguns para casa. Essas edições são simplesmente lindas! Escolhi os livros pensando em exemplos de cada gênero textual: poesia (Da morte. Odes mínimas), um livro de novelas (Tu não te moves de ti) e um romance (Estar sendo. Ter Sido).
     Cartas a um jovem poeta, do Rilke, dispensa apresentações, né? Um título importante que faltava por aqui.

     Esse livro foi uma compra por impulso. Faz tempo que planejo ler algo do Junot Díaz (estava mais inclinada a ler o seu romance mais recente, This is how you lose her) e quando fui buscar em uma livraria virtual para ver o preço, vi que este estava esgotado. Fiquei preocupada de não sair uma segunda edição tão cedo e fui caçá-lo na Estante Virtual. Acabei pagando super baratinho e recebendo mais rápido ainda porque o sebo era próximo de minha cidade. Estou empolgada para ler e o estilo do autor tem tudo para me agradar!

 

     Vou confessar que essas capas coloridas da Penguin são um perigo para mim, fico desejando ter um exemplar de cada cor! Ganhei esses dois, que fazem parte da coleção "Grandes Amores". Guy de Maupassant era um autor que eu já conhecia e tinha vontade de ler mais e o outro confesso que quis pelo título, achei intrigante. 
     Meu primeiro Proust! ♥ Aproveitei a promoção da Editora Globo e comprei o primeiro volume de Em busca do tempo perdido. Agora só faltam os outros seis, né? E ler todos, claro. Mas suspeito que não vou demorar muito para ler, é um autor que sempre quis conhecer. 


     Ai ai ai, o final do ano e suas promoções fantásticas! Bom, essas foram as comprinhas do mês de novembro, pessoal. 

      Até mais e boas leituras! :)


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Alice e Ulisses, Ana Maria Machado

Título: Alice e Ulisses
Autor: Ana Maria Machado
Editora: Objetiva (Alfaguara)
Edição: 1ª edição, Rio de Janeiro, 2012.

            Alice e Ulisses é o primeiro romance adulto de Ana Maria Machado, reconhecida internacionalmente e ganhadora do Prêmio Hans Christian Andersen por sua extensa obra voltada para o público infantil. É notório também seu envolvimento com a Academia Brasileira de Letras, a qual presidiu durante o biênio 2012/2013.
            A autora demonstra em seu romance de estreia invejável desenvoltura com a linguagem que aparece simples, mas jamais superficial. Os papéis dos personagens principais remetem o leitor aos grandes personagens da literatura: Alice é uma mulher curiosa, com uma tendência a não pensar demais nas consequências de suas explorações, mas uma inteligência aguçada. É interessante também seu envolvimento com o universo infantil por meio da profissão de professora e seu gosto pelos contos de fada, que surgem pontuando os acontecimentos da narrativa. Ulisses, por sua vez, gosta da aventura e a vive com sinceridade fervorosa, mas é incapaz de abandonar a ideia do lar como lugar para o qual deve retornar. Cineasta famoso e respeitado, Ulisses encontra Alice – cujo ex-marido era crítico de cinema – em um coquetel e desde então não conseguem se desligar totalmente um do outro.
            O relacionamento é intenso e há um conflito entre as personagens que muitas vezes reflete o conflito entre o masculino e o feminino. A própria Alice, em certo momento, define o problema do relacionamento entre os dois como “político”, resultado de sua condição de mulher. Ela questiona e tenta entender o motivo dessa paixão, reclama sentir-se colonizada e esses questionamentos encaminham o livro para seu ponto alto – curiosamente, um momento que exclui Ulisses – em que Alice encontra-se frente a frente com a esposa de seu amante. Esse é um momento de ruptura para Alice, que se percebe personagem em uma encenação e não aceita se manter nessa condição. Essa ruptura se dá também na narrativa que é predominantemente em terceira pessoa, mas se encerra com um parágrafo na primeira.
            O emprego deste recurso é particularmente interessante em face da revelação que Alice faz a Ulisses de que está trabalhando em escrever sobre os dois, motivada por uma necessidade de racionalizar o relacionamento e também por sentir-se vista como personagem, como objeto de estudo de seu amante em seus filmes e ter vontade de inverter a câmera. Uma possibilidade de leitura seria, então, a de que o narrador em terceira pessoa onisciente que predomina o livro é uma face da própria Alice, analisando e editando os fatos – sua libertação enquanto narradora acontece ao mesmo tempo em que sua libertação enquanto ser humano, sua negação de manter-se fiel à tradição esperada dos relacionamentos entre homens e mulheres.
            Se a tradição é recusada no que diz respeito aos relacionamentos, é aceita no plano literário. Alice e Ulisses lança mão, sabiamente, de diversos textos clássicos e autores importantes para ancorar sua narrativa. A escolha da linguagem marcada pelo coloquial é interessante recurso, uma vez que evita dar ao texto um ar de pretensão, mas sim dando vida aos diálogos e, consequentemente, aos seus enunciadores – e aí está o maior trunfo do romance. 

Nota: ♥♥♥♥

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Clarice, Benjamin Moser

Título: Clarice,
Autor: Benjamin Moser
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: Cosac Naify
Edição: 2ª edição, São Paulo, 2013.

            Clarice Lispector sempre foi uma figura intrigante em nossa Literatura e coube a Benjamin Moser, crítico e tradutor norte-americano interessado na língua portuguesa e, em especial, em nossa Literatura, tentar traçar o mais completo perfil de uma de nossas maiores escritoras.
            A linguagem clara e a boa organização são os principais auxiliares de Moser para contar a vida de Clarice. O livro inicia-se com uma tentativa de esclarecer as circunstâncias do nascimento da autora - propositalmente obscuras graças aos esforços de Clarice, que odiava ser vista como uma escritora “estrangeira”. De origem ucraniana, a família Lispector fugiu da perseguição dos judeus e conseguiu deixar o continente europeu, porém não incólume. Clarice, que nasceu quando boa parte da rota de fuga de seus pais já estava para trás, não tinha recordações desses acontecimentos que deixaram memórias marcantes em seus pais e suas irmãs, mas ficou com muitas recordações das consequências. A pesquisa intensa de Moser prova-se frutífera para o entendimento da obra da autora ao relacionar, sabiamente, as cicatrizes que esse período deixou nos Lispector e alguns motivos recorrentes na obra de Clarice. Também relaciona à infância o gosto pela narrativa, artifício escolhido pela então menina para distrair sua mãe da dolorosa doença que culminou em sua morte, deixando as três meninas Lispector órfãs.
            Acompanhamos então o desenvolvimento de Clarice de uma criança inteligentíssima a uma jovem promissora, interessada tanto em Literatura quanto em Cálculo. Os Lispector estabelecem-se em Recife durante a infância e adolescência de Clarice, mudando para o Rio de Janeiro quando suas irmãs estão mais velhas e já trabalhando e Clarice prestes a entrar na Universidade. Gradua-se em Direito, mas dedica-se à profissão jornalística e ingressa no mundo da Literatura com a publicação de seu primeiro romance, Perto do coração Selvagem. É na Universidade que conhece o homem que viria a ser seu marido, Maury Gurgel Valente, diplomata com quem Clarice parte do Brasil para morar por alguns anos na Itália, Suíça e, por fim, nos Estados Unidos. Com ele tem dois filhos, Pedro e Paulo e durante esse período trabalha intensamente, porém encontra dificuldades para publicar seus livros. A saudade do Brasil e de suas irmãs e a frustração com a vida essencialmente doméstica levam a uma separação e o retorno ao Rio de Janeiro. É notável o respeito com que o autor aborda as relações marcantes da vida de Clarice, sejam amizades ou romances.
            Moser segue sua obra organizando-a em torno dos livros escritos e publicados por Clarice, dando ao seu leitor insight enriquecedor sobre algumas questões que interessavam a autora. É bem observada a relação do pensamento da autora com o do filósofo Spinoza, de quem foi leitora. Apesar disso, pouco é dito das leituras realizadas por Clarice – ela mesma raramente citava outros autores e essa curiosidade não é satisfeita aqui também.
 São abordados alguns de seus textos jornalísticos com a sensatez apropriada, uma vez que Clarice recusava-se a assiná-los com seu nome verdadeiro em vida apesar de agora serem publicados em coletâneas com seu nome postumamente.
A obsessão com o nome é, afinal, um dos grandes temas da autora. Resulta, principalmente, da influência que o pensamento religioso judaico, em especial seus estudos de Cabala, que se desdobra em diversos questionamentos presentes em seus escritos. A questão religiosa é apresentada com particular maestria por Moser, que resiste bravamente à tentação de simplificar o complexo pensamento presente na obra de Clarice.
O retrato pintado por Moser é fascinante e dá ao leitor uma visão rica de Clarice Lispector – jovem judia de sotaque diferente, a impecável mulher de diplomata, a mãe e escritora e, finalmente, uma autora reconhecida pelo seu país. Apesar disso, ainda fica a sensação de que algo escapa... e nenhuma sensação poderia ser tão apropriada quando o assunto é Clarice. 

Nota: ♥♥♥

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Estorvo, Chico Buarque de Hollanda

Título: Estorvo
Autor: Chico Buarque de Hollanda
Editora: Record/Altaya
Edição: Coleção Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa, 1998.

          Estorvo é o romance de estreia do compositor Chico Buarque, publicado pela primeira vez em 1991 e recebido positivamente pela crítica que premiou-o com um prêmio Jabuti de melhor romance.
       Narrado em primeira pessoa, Estorvo, acompanha seu personagem anônimo em suas ações durante uma fuga causada por um rosto misterioso que ele vê em seu olho mágico e que o perturba a ponto de decidir fugir e evitar sua própria casa. A partir desse momento o leitor percebe que terá que decifrar as informações fragmentadas que o fluxo de pensamento do personagem nos oferece sem quase nenhuma linearidade temporal. O autor tira proveito máximo desse recurso para cercar sua narrativa de uma atmosfera onírica, fazendo com que a dúvida paire no ar.
            A busca por um lugar seguro acaba como uma busca por lugares femininos – as duas principais relações mantidas pelo personagem são com sua irmã e sua ex-mulher e o apartamento de sua mãe é retomado constantemente, apesar de se apresentar sempre indisponível. Ambas as mulheres que são de fato presentes em sua vida o aceitam como se aceita alguém incapaz de cuidar de si mesmo e é essa a principal impressão que o personagem deixa em seu leitor.
            Suas ações são gratuitas, movidas pela inspiração do acaso. Suas consequências, no entanto, são reais – existe uma oscilação entre o que diz respeito ao narrador e aos personagens secundários que insinua essa distinção. Talvez essa seja a maior falha do livro: falta algo que ancore a narrativa ou pelo menos seu personagem principal que é mais do que mero estorvo para os que estão ao redor: fica difícil acreditar que suas ações não tenham nunca peso quando elas acarretam consequências tão graves para aqueles ao seu redor. Ou será que suas ações não tem peso e ele só deseja que assim seja, perdido em seus pensamentos?
            Apesar da narrativa insatisfatória em si mesma, o uso de recursos linguísticos faz com que a leitura seja agradável. A prosa marcada pela individualidade não-individual de seu narrador que é ninguém e qualquer um é  bem construída e mantida durante o livro todo por meio de uma prosa simples. Essa construção condiz harmonicamente com seu narrador que em diversos momentos devaneia hipóteses, constrói cenário e os abandona bruscamente – assim como parece abandonar tudo mais que o rodeia, porém sem que isso deixe de acrescentar ao todo uma nova informação. É nessa realização que está o alicerce do incerto romance de Chico Buarque que cumpre o que propõe desde o começo: não dar respostas ao seu leitor, perdido na perturbação de seu estorvo.

Nota: ♥♥♥

            

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe

Título: Histórias Extraordinárias
Autor: Edgar Allan Poe
Tradução: Clarice Lispector
Editora: Nova Fronteira (Saraiva de Bolso)
Edição: 1ª ed., Rio de Janeiro, 2011.


     Histórias Extraordinárias é uma coletânea de contos escritos pelo autor norte-americano Edgar Allan Poe que demonstra seu alto grau de reflexão sobre a arte da escrita em suas realizações eficientes. Em vida, Poe destacou-se em seus textos de crítica literária que demonstravam uma visão clara e informada que viria a ser definidora também de sua obra literária.
     A ideia de eficiência é uma constante para o autor, como o ensaio A filosofia da Composição permite-nos perceber. Poe acredita na construção cuidadosa, metódica e atenta de cada obra literária para que seja alcançado o efeito desejado por seu autor. Para isso, além de escolher cuidadosamente os elementos integrantes que enriqueçam o tema ou motivo escolhido como objeto– o cenário, os personagens, os símbolos – deve-se também atentar para a extensão do texto, uma vez que uma leitura interrompida tende a diluir o efeito a ser alcançado pelos recursos empregados. Sua obra é considerada parte da resposta norte-americana ao Romantismo europeu conhecida como a Literatura Gótica norte-americana. Os autores desse movimento literário aproveitavam das origens puritanas do país e das ansiedades despertadas pela sociedade em mudança para construir suas narrativas que lidavam com o lado obscuro da sociedade.
     É por isso que vemos em Histórias Extraordinárias uma série de contos curtos na extensão total e também na extensão dos períodos que os compõem – muitas vezes contando com frases formadas por apenas algumas palavras e que imprimem um ritmo crescente à leitura, criando uma tensão conforme o desfecho se aproxima. É dada preferência ao tom confessional também comum ao Romantismo da época, evidenciado na presença maior de narradores em primeira pessoa cuja incredulidade frente aos fatos narrados ecoa a reação esperada do leitor.
     Poe busca inutilizar o pensamento racional perante as incoerências da natureza – seja por meio de elementos sobrenaturais, seja por meio de personagens obsessivos, que fazem com que seu leitor questione a natureza humana em seu todo. Existe evidente cuidado na construção e manutenção de uma atmosfera opressora e sombria, das quais contos como “O gato preto” e a casa em decadência do personagem principal e “A queda da Casa de Usher”, outro lar destruído, são exemplos perfeitos. O gênero policial é explorado em contos como “Os crimes da rua Morgue” e “O coração denunciador”. As possibilidades da (pseudo)ciência da hipnose são motivo para “O Caso de Valdemar” e “Deus (Revelação Magnética)”. Merecem destaque ainda “William Wilson”, interessante reflexão sobre a identidade individual e “O retrato oval”, uma das reflexões sobre a arte mais interessantes na obra. Os contos são um conjunto de exemplos únicos da possibilidade contida dentro da Literatura que escolhe o terror como causa de sua tensão e de como aproveitá-lo para trabalhar ansiedades humanas como o medo da morte, do incompreensível e do comportamento humano quando esse se apresenta inexplicável. 

Nota: ♥♥♥♥♥